No programa 20 MINUTOS ANÁLISE desta quinta-feira (10/03), tracei um roteiro sobre a Guerra na Ucrânia, detalhando não apenas o conflito militar entre Moscou e Kiev, mas a guerra de narrativas que vem ocorrendo.
Ambos lados buscam vender seu peixe, justificar suas razões, exibir fatos que lhes favoreçam e omitir os que causam algum prejuízo. A Rússia tem declarado que não se trata de uma guerra de conquista ou anexação e que não tem intenção de levar à queda de Volodymyr Zelensky, o presidente ucraniano, ou a mudança do regime político de Kiev, embora fale em “desmilitarização e desnazificação” do país vizinho.
Negociações já estão em curso, entre Kiev e Moscou, pois a pressão militar russa é implacável. Usada como bucha de canhão, a Ucrânia não pode contar com a solidariedade militar dos Estados Unidos, verdadeiramente interessados em uma guerra econômica que possa enfraquecer o principal aliado da China.
De todo modo, o conflito poderá ter um desfecho em breve. O fato é que a guerra na Ucrânia será historicamente registrada como o fim da ordem unipolar criada em 1991. O monopólio norte-americano sobre a guerra e a violência foi quebrado pelo exército russo.
Para maior clareza sobre como chegamos até na evolução dos acontecimentos e tomar posição, precisamos pesquisar o processo histórico precedente ao ataque militar russo. Para tanto, dividamos a linha do tempo da guerra na Ucrânia em seis episódios.
Fim da URSS e a dupla política dos EUA no leste europeu
O primeiro episódio diz respeito à dissolução da União Soviética. Tanto a Rússia quanto a Ucrânia integravam a URSS. No ocaso da União Soviética, tanto a Rússia quanto a Ucrânia tornaram-se independentes e isso colocou problemas importantes para serem resolvidos.
O primeiro deles deveria ser resolvido entre russos e ucranianos: a partilha de infraestrutura comum, o respeito às minorias nacionais, o posicionamento das armas nucleares. Acordos foram assinados e o mais relevante dos dilemas, as armas atômicas, foi resolvido com a transferência das ogivas em solo ucraniano para a Rússia, no início dos anos 90, com o compromisso de Kiev, através dos Memorandos de Budapeste, em banir qualquer possibilidade de rearmamento nuclear no futuro.
O segundo grupo de problemas dizia respeito à relação com o lado vencedor na Guerra Fria, o campo capitalista liderado pelos EUA. Esse ponto ficou em aberto, dando origem ao segundo episódio: a dupla política norte-americana no leste europeu.
Vencedor na Guerra Fria, o sistema imperialista criado em 1945, sob o comando dos Estados Unidos, passou a dar as cartas em um mundo unipolar. O que fazer com os vencidos foi um dos grandes dilemas da Casa Branca.
Além de impulsionar a restauração capitalista em todo o antigo campo socialista, inclusive na Rússia, era necessário definir as relações que esses novos Estados burgueses deveriam ter com o sistema. Os EUA e seus aliados europeus, então, se decidiram por uma dupla política, separando as nações menores da Federação Russa.
A orientação para esses Estados menos relevantes foi integracionista. Com a Rússia, no entanto, foi diferente. Ao contrário de buscar sua integração ao sistema imperialista, a partir da segunda metade dos anos 90 tratou-se de estabelecer uma estratégia de fragmentação, enfraquecimento e isolamento: não era de interesse estadunidense uma Rússia unida e forte, com armamento nuclear.
Assim, a resposta da burguesia russa foi eleger Putin, um nacionalista grão-russo, disposto a enterrar as políticas neoliberais praticadas sob Boris Yeltsin entre 1991 e 1999, e construir um capitalismo de Estado. A réplica dos Estados Unidos, na virada do século XXI, foi acelerar os esforços de cerco e isolamento da Rússia, incluindo o território militar.
Nisso entra o terceiro episódio: para contribuir com a estratégia de isolamento à Rússia, a Otan passou a expandir-se para o leste.
Em 1989, em visita a Moscou, o então secretário de Estado do governo George Bush (1989-1992), James Baker, prometeu ao último presidente soviético, Mikhail Gorbatchev, que a Otan não avançaria “nenhuma só polegada rumo ao leste”, mantendo-se em suas fronteiras originais, na Europa Ocidental. A partir dos anos 90, essa promessa foi continuamente rompida.
Os EUA só não conseguiram virar o jogo a seu favor na Geórgia e na Belarus, frente a uma Rússia mais fortalecida, soberana e autoconfiante, capaz de proteger e ajudar seus aliados.
O principal campo de disputa, então, na escalada expansionista do sistema imperialista, passou a ser o território ucraniano.
Instabilidade política na Ucrânia
Os dois próximos episódios ocorreram na Ucrânia. O primeiro deles, o golpe de Estado em 2014, quando Viktor Yanukovich, eleito em 2010 e importante aliado de Moscou, presidia o país.
Kremlin
Presidente da Rússia, Vladimir Putin; para Breno Altman, guerra na Ucrânia representa fim da ordem unipolar
Forças oposicionistas, apoiadas pelos Estados Unidos e a União Europeia, lançaram-se em manifestações de protestos contra seu governo. Esse movimento, conhecido como Euromaidan, tinha como principal bandeira a integração da Ucrânia na União Europeia. A mobilização, que reunia grupos social-democratas e frações nacistas, confluiu em um golpe de Estado que derrubou Yanukovich e desatou uma brutal perseguição contra seus aliados.
Já no segundo episódio, resultado desse grande momento de instabilidade política no país, encontra-se a resistência ao golpe, protagonizada pela Rússia.
Preocupada com os efetivos de sua força naval no mar Negro, concentrados na Crimeia, Moscou ordenou a ocupação militar imediata da Crimeia e organizou a realização de um referendo popular, no qual a maioria dos votantes decidiu pelo retorno da região à jurisdição russa, em resultado contestado por Kiev e seus aliados ocidentais, que passaram a aplicar fortes sanções econômicas contra o país de Putin.
Outro movimento importante de resistência ao golpe de 2014 foi interno. Os comunistas e os movimentos pró-russos se deslocaram para o leste do país, na região do Donbass, um distrito de maioria russa, e lá criaram duas repúblicas rebeldes, Donetsk e Lugansk.
Forças regulares e irregulares ucranianas desataram uma feroz agressão militar contra os rebeldes, levando o país a uma guerra civil entre abril e setembro de 2014. Tiveram papel de destaque nesta agressão o Batalhão Azov, neonazista.
A guerra civil terminou com os chamados Acordos de Minsk, que previam a realização de um referendo no qual a população das repúblicas rebeldes deliberaria sobre seu grau de autonomia em relação a Kiev. Os acordos também concediam a essas repúblicas o poder de veto sobre a política militar ucraniana. Os russos, em troca, abandonariam qualquer reivindicação de incorporação ou independência dessas repúblicas, embora a maioria de seus cidadãos seja russa.
Reação russa
Assim chegamos ao último episódio que levou à situação atual. Desde os Acordos de Minsk até 2021, a Ucrânia vivia um clima de paz instável. A partir de 2021, no entanto, a situação começou a mudar. Os ataques contra Donetsk e Lugansk se ampliaram. Zelensky anunciou que seu país efetivamente pediria ingresso na União Europeia e na Otan. Os Acordos de Minsk ficaram paralisados.
A Rússia reagiu contra a postura de Kiev e demandou imediatas negociações diplomáticas, com a participação dos EUA e da União Europeia, para deter os movimentos anunciados pelo presidente ucraniano. Mas Putin parecia estar falando para surdos: as questões levantadas por Moscou foram sendo desdenhadas e os EUA estimulavam que Zelensky seguisse adiante em suas ameaças contra a Rússia.
Diante da inflexibilidade diplomática de Kiev, dos EUA e da Otan, no final de 2021 Putin resolve demonstrar que não estava para brincadeiras e que suas demandas deveriam ser escutadas com seriedade. Mobiliza cerca de 130 mil soldados para a fronteira com a Ucrânia, em dezembro, deixando claro que não era uma opção se render a fatos consumados.
A Ucrânia e a Casa Branca continuaram inertes e inflexíveis. No início de fevereiro, uma declaração do presidente ucraniano aumentou a temperatura. Zelensky afirmou que a Ucrânia continuaria signatária do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, com estava estabelecido desde os Memorandos de Budapeste, mas que se fosse integrada à OTAN poderia receber ogivas e mísseis nucleares, já que essas armas não seriam de sua propriedade, mas da aliança militar do sistema imperialista.
O passo seguinte de Putin foi reconhecer, em 21 de fevereiro, a independência das repúblicas rebeldes de Donetsk e Lugansk, deixando claro que Moscou se mobilizaria militarmente para defende-las.
Os EUA, a OTAN e Kiev elevaram o tom de voz. As nações europeias, inclusive a Alemanha, se ajoelharam diante da Casa Branca. Novas sanções econômicas contra a Rússia começaram a ser adotadas.
No dia 24 de fevereiro Moscou ordenou o que Putin chamou de uma “operação militar especial” contra a Ucrânia, para destruir suas instalações militares, proteger as repúblicas rebeldes, asfixiar Kiev e obrigar Zelensky a uma negociação direta com a Rússia, na qual o fim da ofensiva militar estivesse condicionada à aceitação das exigências moscovitas.
Moscou rompeu o direito internacional, é verdade. Não que esse fosse uma virgem imaculada, longe disso. Desde 1945 os EUA seguidamente fazem trapo das leis internacionais quando lhes convém, patrocinando uma série enorme de guerras e agressões ilegais, sem jamais sofrerem sanções de qualquer tipo.
Aliás, as sanções draconianas estabelecidas pelos Estados Unidos e a União Europeia contra a Rússia são tão ou mais ilegais que o ataque de Moscou a Ucrânia, pois foram decididas fora de qualquer institucionalidade – no caso, teriam que ser aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.