No programa 20 MINUTOS INTERNACIONAL desta quinta-feira (31/03), o fundador de Opera Mundi, Breno Altman, entrevistou a pesquisadora e especialista na política externa russa Rose Martins sobre as reações ao conflito na Ucrânia.
Segundo ela, o sentimento de “russofobia” alimentado pelo mundo, que fez inclusive com que um restaurante de São Paulo retirasse a opção de strogonoff por ser um prato russo, se trata de “mais um dos instrumentos do cerco dos Estados Unidos à Rússia, que ganha apoio midiático e da sociedade”.
Apesar disso, essa “russofobia” não é atual. Para Martins, o sentimento vem desde o fim da União Soviética, se intensificando durante o primeiro governo de Vladimir Putin, sobretudo após a Guerra da Georgia: “precisam passar essa sensação de que a Rússia é um país agressivo, de demonizar Putin, falar de uma suposta ditadura soviética. Todas as vezes que a Rússia realiza uma incursão militar, que é basicamente o que o Ocidente sempre fez em outros países, essa russofobia fica mais evidente”.
Tal discurso já está tão disseminado que até a esquerda mundial virou refém, como criticou a pesquisadora, que se disse decepcionada com o teor de análises progressistas que “compram a narrativa dos EUA”.
Martins, inclusive, chegou a chamar a esquerda brasileira de eurocêntrica.
“Acho que em geral a esquerda tem uma visão muito purista da geopolítica e da própria guerra. Tenho achado as análises muito ruins, com muitos clichês, sem propor discussões mais profundas. Por que só a Rússia está sendo chamada de agressiva se está fazendo as políticas que o Ocidente faz há muito mais tempo? A Rússia invadiu a Ucrânia, é verdade, mas não é só isso e a análise não pode só estar pautada em questões morais, que é o que se tem feito”, ponderou.
Pelo menos, Martins identificou no povo russo uma cultura e psicologia social de resistência a privações, devido à memória histórica que se tem do país, sobretudo em relação à Segunda Guerra Mundial — não à toa Josef Stalin ainda é uma figura extremamente popular.
“Eles têm um espírito guerreiro por seu histórico de invasões. A geografia russa, que também é complicada com questões de fronteira violentas. É um povo resistente, tanto é que não se escandaliza tanto com a guerra como a sociedade brasileira”, contou.
A pesquisadora citou o financiamento à organizações e movimentos anti-Rússia como uma das estratégias adotadas desde o fim da URSS, em oposição à política praticada em relação às demais ex-repúblicas soviéticas.
Martins explicou que essa movimentação se deu, e segue dando-se, porque a Rússia foi a real herdeira do status jurídico internacional da antiga URSS, além de ser a detentora de seu arsenal nuclear, maior parte dos recursos energéticos e da cadeira permanente no Conselho de Segurança.
Reprodução
Rose Martins criticou a esquerda brasileira por posições ‘eurocêntricas’ em relação ao conflito na Ucrânia
“Acho que para o Ocidente foi interpretado que não seria tão fácil enquadrar a Rússia dentro das suas instituições multilaterais. E aí realmente nos anos 90 houve um esforço para integrar as ex-repúblicas, prestando ajudas que a Rússia não recebeu. Isso ficou mais claro em 2003, após a eleição de Putin, quando o país passa a reivindicar outro tipo de crescimento e deixa de assistir passivamente, por exemplo, o crescimento desenfreado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Principalmente a adesão da Polônia, Hungria e República Tcheca não foram vistas com ingenuidade, mas naquela época a Rússia não tinha como responder como está respondendo agora”, discorreu.
Política reativa e guerra defensiva
Nesse sentido, Martins definiu a postura de Putin como reativa e resultado do escalonamento da estratégica de cerco liderada pelos EUA. Discordou de que se trate de uma política expansionista de cunho pan-eslavista.
“A Rússia entende sua importância como potência regional e quer estabelecer um entorno estratégico de segurança que envolve as ex-repúblicas soviéticas, mas não acho que isso se traduza automaticamente em anexação ou dominação cultural desses países. Não acho que haja uma vontade de dominar a Ucrânia, são atitudes reativas à ameaças de segurança objetivas. Aliás, acho bobagem ficar procurando um desejo da Rússia de dominação da Europa Oriental”, defendeu a especialista.
Ela ainda destacou que, por causa disso, o país não pode ser considerado imperialista, até por não contar com os instrumentos tradicionais do imperialismo. Para ela, esse discurso “faz parte da histeria do Ocidente para criar propaganda sobre a necessidade de conter a Rússia”.
Assim, ela caracterizou a agressão à Ucrânia como uma guerra inter-capitalista e defensiva, ponderando que para os russos ela possa parecer justa.
“Não acho que o país tenha nenhuma política que demonstre ser anti-imperialista, apesar do discurso que denuncia as violações do direito internacional dos EUA. E é uma invasão obviamente, mas, e é duro dizer isso, a Ucrânia é um mero detalhe nessa guerra, porque é uma guerra entre EUA e Rússia que instrumentaliza a Ucrânia, que é apenas o terreno onde ela ocorre. Então é uma guerra defensiva entre Rússia e EUA. Sem falar que é uma guerra que agride a Ucrânia, mas não só a Rússia. Os EUA também estão agredindo o país ao impedir uma saída diplomática que já poderia ter sido conseguida”, refletiu.