Estamos assistindo duas lutas sendo travadas na sociedade
brasileira. A primeira das brasileiras e brasileiros que decidiram que #eleNão,
e estão em franca disputa política contra a barbárie. Até o momento, a julgar
pelas pesquisas e pelo nível de rejeição do fascista, a disputa parece
bem-sucedida. Aquilo que o mundo já conhecia, o caráter truculento, excludente,
autoritário e ignorante do fascista, parece estar, finalmente, sendo desnudado
para grande parte da população.
A segunda luta, infelizmente, tem sido travada no âmbito da
academia e dos setores da comunicação. De forma triste e atabalhoada, desde o
golpe de 2016, existem uma série de “pensadores” que estão na contramão do que
sempre foi o seu papel na sociedade. Um grupo tenaz de pessoas cuja função
política é confundir e abrir espaço para o crescimento do fascismo. Esta luta,
que parece se dar apenas no âmbito das ideias, é por demais importante e seu
efeitos não podem ser minorados. A partir da permissividade acadêmica ou da
distorção deliberada das teorias e da empiria, cria-se uma percepção de que “as
instituições estão funcionando” e que a eleição de 2018 é “normal”. Não é. Corremos
sério risco de vermos nosso país entregue às figuras do século passado,
chocadas como ovos de serpentes e que não oferecem nada mais do que violência,
preconceito, misticismo e morte.
O Fascista É fascista por, pelo menos, sete fatores:
1. “Contra tudo o que está aí”. A negação a política: a
primeira característica do fascismo é a negação da política como forma de
resolução de disputas sociais. O entendimento de que a sociedade é “um todo
orgânico” e que o atrito social é sempre negativo e deve ser mitigado. Seja
através de uma vigorosa educação voltada para a inserção social acrítica, seja
pela criminalização da política ou sua eventual supressão. O fascista vê na
política a fonte de toda a corrupção. Seja corrupção financeira, seja
institucional e até a moral. A política é o mal em si. Os cidadãos precisam se
compreenderem dentro dos espaços sociais a eles destinados, e dali não se
afastarem. Daí surgem os imperativos de “ordem”, “disciplina”, “dever”,
“pátria” como formas de controle e dominação das populações.
2. “Minha bandeira não será vermelha”. A exclusão dos cidadãos:
o fascismo é fruto do conflito distributivo. Onde há pouco pão, inventa-se
formas de dizer que esta ou aquela pessoa não tem “direito” a este pão. O
fascismo faz isto de forma visceral. As ferramentas de exclusão social e
econômica são, inicialmente por meio do conceito de “Estado”. Quem não tem os
valores do fascista, a moral do fascista e não se empenha na direção que o
fascista ordena, perde o “direito” de viver naquele grupo social rebatizado
como “pátria”. Para além da política, são usados o preconceito racial, o
preconceito sexual, religioso ou qualquer outro que possa servir de desculpa
para o apartamento de grupos de indivíduos de seus direitos individuais e da
participação social e política. O ponto final deste processo é a retirada do
direito à vida cuja imagem dos campos de concentração são dolorosamente
eloquentes.
3. “As minorias devem se curvar à maioria ou desaparecerem”. O
corporativismo: O fascismo se caracteriza como um movimento de massas em que
cada apoiador deve envolver-se fisicamente na disputa. Dado que o convencimento
político foi proscrito, porque dito “ideológico”, a pressão exercida pelas
massas arregimentadas funciona como ordem social não escrita. É através da
construção de uma ideia de participação política como imposição física
(numérica) que o fascismo estabelece uma de suas grandes características: o
empoderamento. As massas fascistas acreditam que fazem (fisicamente) o trabalho
de “limpar” a sociedade, ao tomarem para si os papéis que antes eram do Estado.
Organização de milícias, “proteção” de espaços sociais, intimidação e agressão
a opositores políticos, violência contra os politicamente ou moralmente ditos “corruptos”
e toda a gama de micro violências que levam à inviabilidade da vida em
sociedade. Este é o ponto. Através do movimento ativo de seus membros, o
fascismo “empodera” a intolerância e a truculência. A violência passa a ser a
ferramenta social de qualquer fascista, que se sente em condições legítimas de
usa-la contra o que quer que seu julgamento afirme.
4. “O PT criou a luta de classes no Brasil”. O anticomunismo
como legitimidade. O fascismo cria a ideia de que há um mal, uma corrupção
inicial que “abre as portas” para todas as outras: as doutrinas de esquerda. O
discurso é centrado – todo ele – na denúncia, perseguição e banimento deste
“mal”. Desde a opção sexual das pessoas, passando pela “desintegração da
família” e chegando na corrupção da política, tudo é explicado através de
argumentos mágicos sobre as ideias de “igualdade”, “participação” e “direitos”.
Para o fascista as pessoas não são (e nem devem ser tomadas como) iguais, a
participação política envenena a sociedade e “direitos” devem sempre vir
acompanhados de “deveres” para com a “pátria”. É somente obedecendo e sendo
útil que o cidadão tem o direito de existir naquele construto social. As
teorias (e práticas) que afirmam direitos inalienáveis, sejam por origem
biológica ou social, devem ser combatidas. Qualquer ideia ou prática que se
aproxime do entendimento do fascista sobre o que é “esquerda” passa a ser vista
como um exemplo da “corrupção moral” da sociedade. E, por isto, deve ser
extirpada, a qualquer custo.
5. “A ditadura matou pouco. Vamos metralhar os petistas”. O
apelo à violência: O fascista faz uso do apelo social à violência não como mera
ferramenta retórica, mas como promessa de partilha de poder. É a chamada
“promessa fascista”. A cada fascista é prometida a possibilidade do uso da
violência em seus micros contextos e de forma legitimada. O fascista na escola
espera a ascensão do líder para poder bater e espancar os colegas de classe. O
fascista vizinho espera o mesmo para poder “colocar ordem na vizinhança”. Os
policiais e militares aguardam a sua liberação para matar e torturar… e esta
percepção se espraia por toda a sociedade. O compartilhamento da legitimidade
da violência é a liga que faz o fascismo sedutor a todos os grupos sociais. É
por meio desta promessa política, ora velada, ora aberta, que o fascismo
conquista adeptos em todas as classes sociais e até mesmo em grupos-alvo da
violência, como negros e homossexuais. É pela promessa da expiação dos
recalques individuais através da violência capilarizada na sociedade, que o
fascismo chega em uma proposta política com apelo social.
6. “Brasil acima de tudo!”. O nacionalismo. O fascismo é sempre
nacionalista. Mas a ideia de nação, como é claro na bibliografia atual é vazia
de sentido. Compõe a “nação” um rol de características cuja única função é
estabelecer quem “está dentro” e quem “está fora”. E este conjunto é diferente
para cada pessoa que invoca a ideia de nação, além de ser costumeiramente
definido pelos detentores de poder. Assim, é possível ser “nacionalista” e
defender a entrega da Amazônia para os estrangeiros, como já fez o fascista.
Veja-se que a ideia de “nação” fica circunscrita a uma palavra vaga e imprecisa
(“Brasil”) da qual se retiram inúmeras pessoas (quilombolas, a esquerda, os
sem-terra e etc.) ao gosto de quem usa o conceito. Por isso, não é necessário
defender o crescimento da indústria nacional, por exemplo, basta que o fascista
defenda uma ideia mal formulada de “Brasil”, que tenha determinadas
características que excluam 50% da população que, ainda assim, o fascista se
reconhecerá (e será reconhecido) como “nacionalista”. O que varia, em todos os
lugares, é o que efetivamente compõe a Nação, e não a subordinação retórica que
o fascismo faz a este conceito tão plástico.
7. “Por Deus e pela família”. Religiosidade e misticismo. O fascismo vive da construção de um mundo irreal em que ele ocupa a posição de “reserva moral” da sociedade. O fascismo sempre tem “mitos”, pois vive da alteração da realidade sensória por uma alternativa que preencha, sem contradições, a expectativa das massas. Neste sentido, o discurso religioso acrítico é uma ferramenta essencial. Um deus que em nada tem a ver com a construção cristã moderna, pois é capaz de defender a violência, a tortura e o extermínio do outro. Nesta construção religiosa pesam as noções de “árbitro perfeito” das ações e pensamentos do homem e a noção de um “bem comum” que é também variável e de difícil definição. O deus que o fascista professa é uma recriação do papel que ele se atribui na sociedade. Assim como o fascista se vê pleno de qualidades, cônscio e devoto à sua missão na terra, o deus que ele recria é exatamente da mesma natureza. Não há contradição que o pensamento mágico, religioso ou místico, não sane. É possível, para o fascista, dizer-se defensor do amor e da “não violência”, enquanto ameaça, agride, insulta e faz crescer o ódio contra parcelas da população. É o mesmo mecanismo messiânico das Cruzadas. O deus do fascismo tem uma moral elástica (como o próprio fascista) diferindo em atitudes entre os “escolhidos” e todo o resto. Ademais, a noção da divindade superior, eterna, onipotente, onisciente e boa em sua natureza, mitiga o pedantismo com que o fascismo se enxerga no mundo. Afinal, ele não está acima de tudo, existe uma figura a qual ele ainda abaixa sua cabeça. Uma e apenas uma.
A despeito dos esforços de figuras liberais e da grande
mídia, todo o discurso do #eleNão é marcado pelas características mais
arraigadas do fascismo. Seja na perspectiva de Reich ou na de Hannah Arendt,
seja na de Habermas ou Deleuze. O fascismo enquanto movimento social e político,
permite a publicidade dos males e recalques internos de cada indivíduo e,
através deste reconhecimento, ocorre a formação de grupos sociais que se
entendem orgânicos. Os laços do fascista passam a ser prioritariamente os com o
grupo que partilha as ideias. Sua obediência, fé, aliança e mesmo o desejo,
andam dentro e na mesma medida do grupo. Daí a força política dos fascistas
que, por banalizarem o mal e legitimarem o desprezo e violência contra todos os
outros, se fortalecem.
É preciso extirpar o fascismo de um país educacionalmente
ingênuo e com instituições fracas e elitistas. A falta de educação e a vilania
das instituições serão adubo para o fascismo, que não hesitará em as destruir
quando for forte o suficiente para controlar a sociedade.
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Referências
Arendt, Hannah. As origens do totalitarismo. Cia das Letras, São Paulo, 1998
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Volume III. Editora 34. São Paulo. 1999.
Habermas, Jurgen e Leaman, Jeremy. Concerning the public use of History. New German Critique, n 44, 1988
Hobsbawm, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. Paz e Terra. São Paulo 1990.
Reich, Wilhelm. The Mass psicology of Fascism. Orgone Insitute Press. NY. 1946