Entre a ascensão de Adolf Hitler ao poder em 1933 e o início
da Segunda Guerra Mundial, em 1939, milhares de pessoas no mundo se mobilizaram
em torno da luta antifascista. A dimensão mundial representada pelo perigo
nazista mobilizou e articulou diferentes grupos de muitas tendências políticas
em torno de um ideal comum: barrar a ascensão das ideias e práticas associadas
ao atraso, ao racismo e à barbárie.
Está claro que o antifascismo não se originou naquele
momento; é uma consigna dos anos 20, da Itália sob Mussolini, tendo se espalhado
pelo mundo na luta dos emigrados italianos, desterrados pela experiência
fascista. Bem certo também que o antifascismo não terminou naquele momento.
Fortaleceu-se em armas e motivações, combatendo a experiência bélica e
expansionista das potências fascistas durante a guerra até 1945. Expandiu e ressignificou
as frentes de atuação nas lutas contra as ditaduras dos anos 1950 a 1980.
Renovou as práticas e a estética ao tomar as ruas no final dos séculos XX e
XXI.
Os debates teóricos em torno do fascismo são candentes e
ocupariam várias estantes de uma biblioteca; são teorias que acompanharam este
fenômeno desde sua origem até a atualidade. Em síntese, as análises oscilam na
interpretação da experiência como um “acidente histórico”, da qual o nazismo
foi a maior expressão; a partir desta visão, regimes “menos radicais”,
imaginando que fosse possível matizá-los em intensidade, não poderiam ser classificados
como fascistas. Por outro lado, uma corrente analítica há certo tempo procura
assegurar a universalidade da expressão do fascismo em tempos e espaços
distintos; é o que defende Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor da
UFRJ. Neste emaranhado teórico, os estudos historiográficos procuram dar conta
das especificidades das experiências históricas em suas singularidades, em suas
articulações locais, em suas expressões e relações com as culturas nacionais.
No Brasil, assim como em outros países do Cone Sul, a luta
antifascista no entre guerras esteve orientada para um combate em três frentes.
Estas são as conclusões de minha tese de doutorado defendida no Departamento de
História da USP, em 2013. Primeiro, a luta contra os governos autoritários, com
maior ou menor aproximação às ideias fascistas, como foi o caso do muitas vezes
oscilante Getúlio Vargas (ou Gabriel Terra, no Uruguai, Uriburu e Justo, na
Argentina e Arturo Alessandri, no Chile). Uma segunda frente travava de
confrontar os grupos fascistas que surgiram na região, como a Ação Integralista
Brasileira (AIB), no Brasil, a Legião Cívica Argentina ou o Movimento
Nacional-Socialista do Chile ou Movimiento Nacista (assim, com “c” mesmo, para
se diferenciar do movimento alemão), por exemplo. Por último, a luta
antifascista nestes países combatia a influência da Alemanha nazista nas
comunidades de imigrantes alemães na região.
No Brasil dos anos 1930, a luta antifascista teve alguns
momentos emblemáticos: o antifascismo da comunidade italiana, bem estudado por João
Fábio Bertonha, da UEM, ganhou corpo com a criação da Frente Única
Antifascista, a FUA, ativa entre 1933-1934 na cidade de São Paulo. A
organização, pioneira na mobilização de intelectuais, militantes e operários de
diferentes espectros políticos contra o fascismo, foi uma iniciativa da Liga
Comunista (LC), uma dissidência trotskista do PCB e do Partido Socialista
Brasileiro, de São Paulo, como mostrou a tese de Ricardo Figueiredo de Castro,
também da UFRJ. A FUA publicou um jornal, O Homem Livre, onde circularam análises sobre o caráter fascista da AIB ao lado
das consideradas memoráveis críticas de arte tecidas por Mario Pedrosa. A FUA
foi também protagonista da guerra campal, conhecida como “Batalha da Praça da
Sé”, na qual os antifascistas enfrentaram uma marcha integralista em outubro de
1934, com um saldo de mortos e feridos em ambos os lados.
Em um editorial d’O Homem Livre, de 25 de maio de 1933, a
FUA denunciava o fascismo como um “retrocesso travestido de novidade”. Além
disso, o jornal acusava o fascismo de estar “fazendo andar para trás a roda da
história” [1] ao tentar
retomar privilégios de classe.
“Formas arcaicas de organização, anacronismos
políticos, costumes há muito vencidos pela evolução, são retirados do museu da
história e, cheirando a naftalina e já meio comidos pelas traças, são
apresentados aos homens do século XX, quando não como autênticas novidades, ao menos
como a panacéa, antiga, mas boa, que há de curar todos os males da nossa época.”
(“Contra o fascismo”, O Homem Livre)
A Aliança Nacional Libertadora (ANL), articulada desde fins
de 1934 e fundada no ano seguinte, foi também uma frente antifascista no Brasil.
Seu caráter civil e democrático acabou obscurecido pelo particular desfecho da
tentativa de ação revolucionária de novembro de 1935. Particular porque
destoava, em princípio, das recentes orientações da Internacional Comunista que
amenizara seu discurso para a construção das Frentes Populares, discurso este
que se cristalizaria apenas após agosto de 1935, no VII Congresso da
Internacional Comunista. A ideia da formação de frentes de diversos partidos, voltadas
para o combate ao fascismo, teve expressão eleitoral vitoriosa no Chile, na
França e na Espanha. Tais frentes previam, em contrapartida, a flexibilização
de algumas orientações comunistas daquela época, passando a cogitar a
realização de alianças dos partidos locais com as burguesias nacionais.
Da ANL participaram intelectuais, escritores, professores,
advogados, estudantes e vários sindicatos, das mais diferentes orientações
políticas: comunistas, socialistas, simpatizantes, liberais, humanistas. Suas
ações durante a existência da organização (mesmo que em sua fase perseguida,
após julho de 1935) definiam-se pela criação de jornais e revistas, pela
publicação de manifestos, realização de palestras em sindicatos e agrupações
populares, manifestações e contramanifestações. As publicações com maior
incidência foram a revista Marcha (1935), de pequena tiragem e o jornal diário A
Manhã (1935), sob a direção do comunista Pedro Mota Lima, também cassado em
fins daquele ano.
Luis Carlos Prestes foi alçado à liderança da ANL após a sua
criação; amado e odiado líder das marchas ocorridas nas décadas anteriores que
levaram seu nome, a Coluna Prestes. Com grande simpatia entre os militares
herdeiros do tenentismo e respeito de boa parte dos intelectuais e civis
antifascistas, Prestes ainda aderira recentemente ao comunismo, o que vinculava
seu carisma e articulação tanto aos ideais frentistas quanto às estratégias
revolucionárias oriundas da Internacional Comunista. Muitos teóricos têm
dedicado seus estudos a compreender as estratégias tomadas pela Frente Popular
brasileira naquele momento; entre tantos, destaco os trabalhos de Paulo Sérgio
Pinheiro, Marcos Del Roio e Marly de Almeida Gomes Vianna.
Após novembro de 1935, a ANL se dissipou em pequenas células
comunistas, em intelectuais no exílio na Argentina e no Uruguai e em milhares
de presos, alguns torturados e mortos. Os números alcançam a cifra de 6.000
encarcerados, entre militares, intelectuais, congressistas e até mesmo o
prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto. A luta antifascista após a intensa
repressão de 1935 travou-se nas sombras, nas entrelinhas das poucas revistas
que ousaram declarar sua oposição ao governo de Getúlio Vargas e driblar a
censura.
O golpe do Estado Novo, de fins de 1937 foi mais um
agravante para a desarticulação da resistência ao fascismo no Brasil. Tal golpe
foi articulado por um precedente das “fake news”, o Plano Cohen. Tratava-se da
descoberta de um “plano” da Internacional Comunista, forjado pelo capitão
integralista Olímpio Mourão Filho, que, divulgado na imprensa, serviu como
justificativa para o golpe de Estado articulado por Vargas. O plano impediu a
realização das próximas eleições, se aproveitando do clima anticomunista e antissemita
disseminado naquele momento.
No entanto, sabe-se que entre 1937 e 1942, mesmo em silêncio
ou agindo na clandestinidade, a luta antifascista permaneceu ativa. Quando
finalmente Vargas posiciona-se ao lado dos Aliados na guerra em andamento, a
resistência ao fascismo pode voltar a se tornar pública e intensa.
Nesta teia teórica e histórica do que foi o fascismo e,
consequentemente, o antifascismo, é possível perceber que a ação coletiva
organizada, composta por vozes diversas em torno do combate ao fascismo encontrou
força naquele tempo. Nos dias atuais, de autoritarismo crescente, de práticas
fascistas disseminadas no poder e entre a população, é necessário enxergarmos
na história as tragédias e as farsas.
Para isso, recupero o artigo do jurista baiano Hermes Lima,
no jornal aliancista A Manhã, de junho de 1935. Lima militou contra o fascismo
nos anos 30 e contra a ditadura nos anos 70, foi ministro do STF cassado pelo
AI-5. Seu texto sintetiza o sentido de urgência da resistência ao autoritarismo
e ao fascismo ao mesmo tempo em que alerta para o perigo das cômodas ilusões de
que se alcançará a justiça e o bem sem o artifício da luta.
“A atitude de muita
gente quando o poder, mesmo corrupto e desmoralizado, começa a empregar medidas
de força e compressão para defender-se é a de aguardar, sentada na poltrona do
seu comodismo, que suba o pano para o final desagravador do drama que se está
vivendo. […]
Não acho isso nem
bonito de tão falso que é. Justiça, virtude, bem, liberdade são qualidades que
nosso esforço, nossa coragem e nossa luta podem juntar à organização social em
que vivemos, de tal maneira que esperar que tais qualidades “aconteçam” como as
plantas germinam e os frutos caem das árvores, não dá outro resultado senão
fatigar a esperança, desiludi-la. […]
Onde houver uma ameaça
à liberdade, onde se manifestar uma restrição aos direitos civis e políticos, a
única posição de luta é a ação. Quem ficar sentado à espera do dedo de Deus –
corre o risco de apanhar sem saber por que e apesar das boas intenções. Não é
com boas intenções que se constrói o mundo.” (Hermes Lima. A Ilusão
Liberal, A Manhã, n. 49, 21/6/35, RJ.)
(*) Ângela Meirelles é doutora pelo programa de História Social da Universidade de São Paulo e professora-visitante do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma universidade. Publicou “Palavras como Balas: Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939)”, pela editora Alameda.
[1] “As classes trabalhadoras e a
democracia”. O Homem Livre, n.5,
24/6/33, pg.1.
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Conferência anti-integralista realizada no salão da União das Classes Laboriosas em 14 de novembro de 1933