O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, descartou a tradição, mas não as convenções, prorrogando (suspendendo) o parlamento e reduzindo o tempo disponível aos parlamentares britânicos para debater o Brexit.
Na verdade, há alguma similitude entre a atitude de Johnson e o golpe no Brasil. Tanto é que muitos estão utilizando este mesmo vocábulo para descrever o que ele fez. Como diz o próprio Partido Conservador, não há nada de errado com a forma: a suspensão do parlamento acontece todo ano, exatamente neste período, para que as conferências dos partidos, que sempre acontecem nesta época do ano, possam ser realizadas.
Tal como o impeachment, o problema está no conteúdo e na motivação. Primeiro, que esta suspensão é a mais longa desde 1945 e, segundo, porque acontece justamente no período quando o parlamento britânico quer debater o chamado ‘no deal’ – isto é, a falta de acordo que parece ser o inevitável resultado da investida de Johnson.
Curioso é o fato que antes do referendo, os chamados ‘intelectuais do Brexit’ argumentavam que era necessário sair da União Europeia porque esta instituição estaria sufocando a ‘soberania do parlamento’ de deliberar sobre os caminhos do Reino Unido de maneira autônoma. Isso nos diziam aqueles que não eram tão chulos de querer argumentar que o problema com a União Europeia era a livre circulação de pessoas, isto é, a imigração.
Pois bem, não só foi preciso apelar para a suprema corte para que os parlamentares britânicos pudessem debater o Brexit, uma vez que tivesse acordo entre o governo britânico e a União Europeia, mas aqueles mesmos brexiteers que tanto clamavam a soberania parlamentar agora fecham o parlamento para que não haja debate sobre o seu conteúdo final (ou a falta de conteúdo, caso não haja acordo).
Johnson está apostando alto. Algumas poucas semanas atrás, a maioria achava inaceitável a ousadia de tirar a voz do parlamento britânico.
A primeira aposta é constitucional. Isto é, que o ‘no deal’ proposto pelo Partido Conservador e Unionista (para dar o nome completo) não vai quebrar a união entre a Inglaterra e o País de Gales com Escócia e Irlanda do Norte.
Um dos pontos principais que vem emperrando qualquer acordo entre o Reino Unido e a Europa tem a ver com a Irlanda do Norte: a imposição de uma fronteira entre as Irlandas – Norte e Sul – ameaçaria a paz da região finalmente conquistada a duras penas nos anos 1990. Por outro lado, a falta de fronteiras, uma vez que o Reino Unido se retire da união aduaneira europeia, implicaria a falta de regulamentação da importação e exportação de produtos. Situação inaceitável para a União Europeia, caso o Reino Unido saia.
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Boris Johnson prorrogou o fechamento do Parlamento britânico
Além disso, há o ‘problema escocês’. A Escócia votou majoritariamente para ficar na União Europeia e a saída do Reino Unido trouxe à tona, mais uma vez, a questão da independência escocesa. E o problema escocês se torna ainda mais sério com a demissão de Ruth Davidson, a líder do partido de Johnson na nação do norte. Davidson conseguiu reconstruir uma base eleitoral para o Partido na Escócia, pela primeira vez desde Margaret Thatcher. E os Conservadores, sob ela, se tornaram o segundo partido mais votado. Em outras palavras, Johnson não só joga com o eleitorado escocês, mas põe na mesa a mais concreta possibilidade da separação da Escócia de um Reino Unido que sempre vota contra as suas preferências políticas, cujo mais gritante exemplo é o Brexit.
A segunda grande aposta de Johnson é a manutenção da falta de unidade entre aqueles que se opõem ao Brexit. Se a oposição não conseguir coesão rapidamente – o que o fechamento do parlamento dificulta ainda mais – Johnson sairá vencedor.
Para além do Brexit, Boris Johnson já decidiu abrir a caixa forte do tesouro de maneira inédita para os Conservadores desde que Thatcher entrou no poder em 1979.
Ele sabe que o Brexit trará o caos financeiro. Depois de anos de austeridade imposta pelo próprio partido, Johnson busca atrair o seu novo eleitorado – a classe que já não mais se identifica como ‘trabalhadora’ – especialmente no Nordeste do país (ex-base industrial do país e tradicionalmente eleitores do Labour) – injetando os recursos necessários para as áreas sociais, especialmente educação e saúde e polícia, criando empregos e trazendo alívio às populações mais carentes.
Com a saída do Reino Unido da União Europeia dia 31 de outubro, a terceira aposta de Johnson é anunciar eleições e ganhá-las tranquilamente, num período onde o eleitorado estará anestesiado e apaixonado por um primeiro ministro que conseguiu cumprir com o que ele se propôs a fazer. Tudo isso, se apoiando na injeção de recursos que, num primeiro momento, mascarará a grave crise financeira que aparecerá mais tarde com o Brexit.
E o caos político-econômico que virá? Ah, isto fica para ser resolvido só depois da eleição de Johnson.