Atualizada em 19.dez.2019, às 12h
São quase dez anos de austeridade no Reino Unido. Isso se sente com os sem-teto dormindo no frio, nas ruas de quase todas as cidades britânicas; com o NHS, o sistema de saúde britânico, outrora orgulho de toda a nação, caindo aos pedaços, obrigando os pacientes com câncer a esperar por consultas para além do que é seguro e que deixa as pessoas em macas ou no chão dos hospitais aguardando a liberação de camas e quartos (um descalabro ver isso na quinta maior economia do mundo); com a explosão de empregos informais e precarizados, uberizados.
As pessoas ganham tão pouco – sem direitos, nem horas certas – que precisam recorrer às cestas básicas para alimentar seus filhos.
Esta é a Grã-Bretanha que elegeu mais uma vez o Partido Conservador: Um governo que inventou a questão do Brexit e, que, até agora, não teve maioria e nem respostas para lidar com o buraco que eles mesmos cavaram. Porém, apesar dos dez anos de erros, conflitos e austeridade, Boris Johnson ganhou as eleições enquanto os Trabalhistas se afundaram na maior crise partidária já vista desde a Segunda Guerra Mundial.
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Por que?
Alguns depositam a culpa diretamente no líder do partido, Jeremy Corbyn. Ele seria fraco, esquerdista demais. Com certeza, Jeremy nunca foi um Lula, nunca teve popularidade fora dos círculos de esquerda. Não tem carisma suficiente. Apesar de ter trazido um número imenso de jovens a se filiarem ao Partido: é importante frisar que ele mais que dobrou o número de filiados do partido, que tem agora quase meio milhão de membros. Bastava participar da campanha aqui em Londres para ver o mar de jovens tentando angariar o voto da população local. Fosse nos bairros centrais, como North Kensington, ou mais afora, como no bairro judeu de Chipping Barnet, lá estavam eles, no frio, na chuva, encharcados, para assegurar que aquela pessoa indecisa trouxesse mais um voto para o partido.
É verdade também que Corbyn errou. Face a uma mídia hostil, preferiu não confrontar, apostando em meios alternativos. Desde as eleições de 2017, Corbyn quase não aparece na mídia tradicional, deixando que ela construa a narrativa e o carácter do líder Trabalhista sozinha. No geral, não se sabia o que Corbyn pensava sobre as principais questões da nação. Os porta-vozes do partido eram sempre outros.
Houve erros estratégicos durante as eleições também, por exemplo, a decisão de se ausentar de debates depois da avaliação negativa numa entrevista com o jornalista Andrew Neil, ou o lançamento de um programa de governo, que, apesar de bom, já completo e complexo demais, recebia mais e mais adições com cada dia da campanha.
Entretanto há outros fatores que influenciaram o resultado destas eleições, alguns dos quais vale a pena frisar, já que tendem a ser globais e fatores que todos nós da esquerda precisamos aprender a lidar.
O Brexit
Com certeza, uma das razões pela vitória dos Conservadores foi o Brexit. As eleições deram uma grande maioria para Boris Johnson implementá-lo, apesar de o país continuar tão dividido quanto antes.
O sistema distrital britânico faz com que as pessoas votem no parlamentar que irá representar o distrito e não diretamente no primeiro-ministro. O apoio difuso à União Europeia não se transformou em votos nestas eleições, isso é bem verdade (uma derrota também para o principal partido do centro, o Liberal Democrata). Entretanto, o voto a favor do Brexit se mostrou muito mais coeso, com o primeiro-ministro, Boris Johnson, fazendo clara opção pelo expurgo de Conservadores que não se alinhavam à sua posição.
Os trabalhistas, do outro lado, se viram divididos entre dois campos de eleitores: jovens, metropolitanos, nas universidades, que claramente apoiam a manutenção do Reino Unido na União Europeia, e seu eleitorado tradicional nos distritos “ex-industriais”, onde a maioria claramente apoia o Brexit.
O Labour, e principalmente Jeremy Corbyn, não foram capazes de aglutinar estes dois eleitorados, que tinham opções mais claras dos dois lados do debate.
A imagem de Jeremy Corbyn
Já comecei falando da falta de carisma de Corbyn e do fato de que ele não conseguiu forjar uma relação, nem mesmo de civilidade, com a mídia. Não há dúvida que a imagem de Jeremy Corbyn foi um dos motivos pela derrota dos Trabalhistas. Para quem participou da campanha e esteve conversando com os eleitores, mesmo na ilha cosmopolita que é Londres, a imagem de Jeremy Corbyn era vista como ‘tóxica’.
Como já descrevi antes, todos os líderes Trabalhistas pós-Thatcher foram difamados pela mídia britânica, que é tendenciosa e está na mão de poucos bilionários. Isso não é novidade. No entanto, a difamação de Corbyn foi muito mais virulenta em comparação a qualquer outro líder do partido.
Exatamente como aconteceu com Haddad, que teve que passar boa parte das eleições defendendo o PT contra as acusações de corrupção, em vez de falar de suas políticas, os Trabalhistas passaram boa parte do tempo se defendendo das várias acusações feitas contra Corbyn. Fora a questão do ‘antissemitismo’, que já descrevi, e que afastou não só o eleitorado trabalhista judeu, mas a base eleitoral mais ‘liberal’ e metropolitana do partido, Corbyn também foi tachado de ‘comunista’ e ‘antinacionalista’ e, portanto, não poderia ser confiado com a segurança do país.
Como é que um ‘amigo de terroristas’, poderia agora se tornar primeiro-ministro e proteger o país destes mesmos tais ‘amigos’? Este tipo de narrativa se mostrou mais forte entre os eleitores mais velhos das zonas tradicionais, que lembravam das ligações de Corbyn com membros do Sinn Fein (partido separatista da Irlanda do norte que surgiu do antigo grupo nacionalista armado, IRA) nos anos 1990. Além disso, esta imagem foi reforçada pela briga interna entre os chamados ‘Corbynistas’ e as alas mais à direita do partido e a saída de alguns (mas não todos) filiados judeus. Sua reputação caiu ainda mais na última semana de campanha, quando para além da mídia tradicional, começaram a surgir anúncios pagos no Facebook e outras redes sociais, reforçando a versão de Corbyn como inimigo da nação inglesa. Segundo os anúncios, ele iria desmontar o MI5 (serviço de inteligência), era amigo de comunistas e ditadores e da IRA, além de subir os impostos para o ‘trabalhador’ e os que possuem casa particular.
Os chamados ‘esquecidos’ e a base tradicional do partido
Como já tinha descrito, o Reino Unido já não é mais aquele país que viu o surgimento do Partido Trabalhista. A economia britânica não é mais sustentada por indústrias pesadas e nem mesmo por um sólido sistema público – as duas bases tradicionais do sindicalismo que sempre deu sustentação ao partido. A força da economia britânica se concentra essencialmente no sudeste do país e Londres, que viu a expansão de serviços financeiros, e outras áreas de serviço como o turismo e a educação.
Reprodução
Boris Johnson ganhou as eleições, enquanto os trabalhistas se afundaram na maior crise partidária já vista desde a Segunda Guerra Mundial
O Reino Unido é um grande exportador de ‘know-how’ e conhecimento, formada por uma força de trabalho de colarinho branco, classe média, não sindicalizada. O que restou da indústria britânica é altamente especializada, automatizada, que requer muito pouca mão de obra. Fora dos centros metropolitanos do centro e norte (onde, é importante frisar, os Trabalhistas mantiveram apoio) os empregos são, no geral, na área de serviços, precários, sem direitos trabalhistas. A importância disso é que sem o sindicalismo e suas várias entidades sociais não existe contranarrativa e a hegemonia midiática predomina.
A hegemonia da narrativa econômica neoliberal
Para quem estiver interessado, e pode seguir um documentário em inglês, vale a pena assistir um seriado da BBC intitulado “Thatcher: A Very British Revolution”. Mais especificamente, no segundo episódio, a série mostra claramente o momento em que Thatcher troca o ‘consenso keynesiano’ pelo que será chamado de ‘consenso de Washington’. Uma opção econômica que perdura até hoje, implementada tanto pelos Conservadores, como pelos Trabalhistas de Blair. Mesmo assim, sob Blair, o governo investiu pesado nos serviços públicos, melhorando a vida de boa parte da população.
Quando David Cameron assumiu o governo, a narrativa que veio a justificar sua política de austeridade e enormes cortes era que os anos de bonança de Blair teriam quebrado o Estado. Os Trabalhistas nunca podem ser confiados com a economia do país, diz o mantra. A hegemonia dessa narrativa permeou de tal forma a sociedade britânica, que os próprios eleitores das zonas dizimadas pelas políticas conservadoras já não acreditam em mudanças que desviem do caminho do Estado Mínimo.
Os eleitores assistiram incrédulos às promessas dos Trabalhistas de maior investimento nos serviços públicos, da formação de um banco de investimento, de empréstimos para investimento em infraestrutura, mesmo considerando uma taxa de juros estagnada há anos no quase zero. Políticas que, diga-se de passagem, iriam aumentar o Estado Britânico para igualá-lo em tamanho ao Estado alemão, nem chegando a aos níveis das nações nórdicas. E o aumento de impostos empresariais propostos levariam a iniciativa privada a pagar o mesmo nível de impostos de 2010, quando Blair deixou o governo. Tudo isso enquanto a BBC, na sua ‘imparcialidade’, depositava toda a sua credibilidade nas análises do “Institute for Fiscal Studies” que criticaram as políticas dos Trabalhistas como se economia fosse ciência exata. Isso, somado a mais um erro do partido: mesmo sem ser capaz de convencer a opinião pública que o seu programa fazia sentido econômico, continuou a prometer a cada dia de campanha mais coisas numa tentativa de desviar o debate do “Brexit já”.
A desunião entre os “Remainers”
Tanto do lado de Labour, como dos outros partidos pró-Europa, não houve nenhum tipo de pacto ou união entre Labour e os Liberais Democratas, os partidos nacionalistas escocês e galês, e os verdes. É certo que Labour, na sua posição neutra ao Brexit, não podia se identificar com a ala pró-Europa nestas eleições e que a líder dos Lib Dems também errou na promessa de revogar a lei que viabiliza a saída do Reino Unido da Europa sem referendo. Porém, o mal-estar entre os partidos inviabilizou a possibilidade de acordos eleitorais tácitos. Um exemplo são os distritos eleitorais de Kensington, onde, se os Lib Dems tivessem se ausentado, a vitória seria de Labour e vice-versa em outros distritos.
E, finalmente,
O papel da mídia e o uso das redes sociais
É importante frisar o caráter global das eleições britânicas. Deixando de lado as peculiaridades do sistema e da situação britânica, há similaridades entre estas eleições e várias outras que vem acontecendo no mundo. O mais importante assessor de Boris Johnson, Dominic Cummings, foi o principal estrategista do Brexit. Este referendo viu os primeiros sinais do uso nefasto das redes sociais em campanhas políticas aqui na Inglaterra, com o uso massivo do Facebook para campanhas que visavam grupos de eleitores específicos com mensagens falsas.
Como já mencionei, similaridades com as campanhas brasileiras incluem a) a demonização do candidato e partido de oposição com a ajuda da mídia; b) mentiras e narrativas simplistas não verificadas ou rebatidas pela mídia tradicional; c) A falta de processos reguladores e jurídicos para lidar com a influência das redes sociais e de indivíduos e empresas (internas ou externas ao país) que se envolvem nas campanhas de forma tácita; d) A não participação em entrevistas e debates, deixando as aparições para situações controladas que podem ser enviadas diretamente a grupos de eleitores (Boris Johnson chegou a se esconder num refrigerador para evitar uma entrevista); e e) a equiparação dos lados.
A falta de ‘credibilidade econômica’ do programa de governo trabalhista alegada pelo Institute for Fiscal Studies – uma probabilidade e não uma certeza – foi equiparada às mentiras comprovadas contadas por Johnson, confundindo os eleitores. O resultado disso é sempre o mesmo: a degradação da política no geral (se os Trabalhistas são tão mentirosos quanto os Conservadores, então melhor ir com os conservadores, pelo menos eles não são amigos de terroristas, etc.).
E finalmente, o uso das redes sociais. Se os Trabalhistas tiveram boa inserção nas redes sociais durante a campanha como um todo devido à quantidade de jovens trabalhando para o partido, os Conservadores (com muito mais recursos financeiros) concentraram o uso de mensagens nas redes durante a última semana de campanha que viu um surto de anúncios pagos, pelo partido e especialmente por entidades que parecem ter surgido especificamente para tanto.
O resultado, tal qual no Brasil, surpreendeu no sentido de que a maioria parlamentar prevista pelas pesquisas de opinião foi muito maior do que esperada.
Agora falta saber como Johnson vai se portar. Ele tem na mão um eleitorado que vai querer respostas às suas necessidades. Não esperem que Johnson vá simplesmente seguir o receituário neoliberal. É difícil saber as cores que um camaleão irá tomar. Mas a minha aposta é que esse governo será parecido ao que vemos na Polônia, que acabou de ser reeleito: conservador em costumes e autoritário nas questões policiais, de direitos humanos, de minorias, etc., com investimentos grandes no social. Suspeito que Johnson investirá no país tanto para mitigar os efeitos econômicos do Brexit como para manter seus novos eleitores do norte.
É importante também lembrar que, quando Thatcher assumiu o poder, Labour perdeu boa parte de sua base eleitoral – a classe trabalhadora do sudeste – que nunca foi reconquistada pelo partido. Até agora, tampouco vimos um retorno da classe trabalhadora escocesa. Ao contrário, houve consolidação do poder do SNP. Seria ingenuidade achar que os eleitores perdidos no norte e centro da Inglaterra nestas eleições voltarão ao partido Trabalhista, apostando num fracasso de Boris Johnson.
A América Latina se encontra num ciclo diferente do europeu e americano, com ganhos recentes e memoráveis para as classes trabalhadoras, perpetrados por partidos de esquerda. É minha convicção que o Brasil foi usado de ‘campo de ensaio’ para algumas das novas técnicas e estratégias utilizadas pela direita. Por isso, é importante pensar os novos desafios que se impõem à esquerda globalmente e encontrar novas soluções. Não somos imunes às consequências do que estamos observando.