Uma pandemia é, necessariamente, um desafio internacional, mas, até o momento, a cooperação multilateral entre as potências do sistema internacional em matéria de covid-19 tem sido irrisória. A Organização Mundial da Saúde (OMS), principal organismo internacional para a articulação em alto nível dos atores globais no campo da saúde, tem sido atacada em diversos fronts, com o presidente norte-americano Donald Trump chegando mesmo a anunciar, em abril, que os Estados Unidos congelariam seus pagamentos à organização por questões ‘sinocêntricas’ envolvendo o vírus e que poderiam fazê-lo definitivamente, retirando os Estados Unidos da OMS.
Tais embates, acusações e disputas internacionais têm aprofundado o cenário de incerteza já crítico trazido pela pandemia de covid-19. O vírus criou novos fenômenos e acentuou processos políticos que já estavam em pauta na agenda internacional, como questões envolvendo soberania, disputas comerciais, populismo, integração regional e desigualdade socioeconômica.
Diatribes direcionadas ao multilateralismo e à cooperação interestatal para tratar de problemas que ultrapassam as fronteiras apenas inutilizam organismos internacionais que poderiam ser fóruns para cooperação e solução dos atuais problemas. Em um mundo já bastante polarizado, o vírus foi capaz de dar origem e agravar cisões na política internacional – e na doméstica também – e a OMS não escapou.
Siga EM TEMPO REAL e com gráficos didáticos o avanço do novo coronavírus no mundo
Como autoridade coordenadora da saúde internacional no sistema das Nações Unidas, a OMS, fundada em abril de 1948, carrega como substancial escopo a obtenção, por todos os povos, do nível de saúde mais elevado possível, segundo o seu documento constitutivo. Integrada por mais de 190 Estados Membros, a organização considera o conceito de saúde como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas como a ausência de infecções ou enfermidades”.
Logo, para além de questões como nutrição, habitação, saneamento básico, condições de trabalho e meio ambiente, a OMS tem sua atuação voltada a situações emergenciais, como o combate a surtos epidemiológicos. Como exemplos recentes da atuação da organização temos o auxílio prestado em 2016 no enfrentamento do vírus zika no Brasil e entre 2014-2016 e 2019 na questão do ebola em países ocidentais e centrais do continente africano.
No tocante à estruturação, a OMS dispõe de escritórios em mais de 150 diferentes países, valendo-se do trabalho de mais de 7.000 pessoas, desde médicos, gestores em saúde pública e epidemiologistas até especialistas em sistemas financeiros, administrativos e estatísticos.
O funcionamento dessa organização é alicerçado por contribuições de seus Países Membros, majoritariamente nas assessed contributions – quotas calculadas levando em conta o Produto Interno Bruto e a população que os Estados pagam para serem membros da organização – e nas contribuições voluntárias – que podem ser feitas por entidades como Organizações Não Governamentais (ONGs) e também pelos Estados Membros – que se dividem em specified contributions e core contributions. Neste ponto, as polêmicas já começam a aparecer.
De acordo com o site da OMS, ao final de 2019, as contribuições dos Estados Unidos para a organização – em assessed contributions e specified contributions – eram superiores em mais de 10 vezes às contribuições chinesas. Para termos uma ideia, as contribuições da Noruega superaram as do país asiático em 2019.
Leandro Santana/Ascom PCPA
vírus criou novos fenômenos e acentuou processos políticos que já estavam em pauta na agenda internacional
Todavia, em apenas alguns meses, este cenário mudou completamente, com as ameaças de Donald Trump e a promessa de Xi Jinping que Pequim doaria US$ 2 bilhões para o combate do coronavírus e outras ações em países subdesenvolvidos na ocasião da septuagésima terceira sessão da assembleia da OMS – a primeira virtual da história.
Esse compromisso foi prontamente criticado pelos Estados Unidos, sendo considerado um gesto simbólico para buscar amenizar as supostas falhas chinesas e da OMS na contenção inicial da pandemia. Assim, ao passo que as querelas comerciais e geopolíticas entre os Estados Unidos e a China roubam a cena na arena multilateral da OMS, o vírus segue se espalhando e o mundo tem sofrido com a falta de coordenação entre os países, conforme afirmou António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, na abertura da assembleia no dia 18 de maio.
Obviamente, como muitos analistas têm apontado, os arranjos institucionais internacionais não serão mais os mesmo após a pandemia. O protagonismo e a liderança estadunidenses que marcaram momentos como o pós-Segunda Guerra Mundial e o pós-Guerra Fria talvez sejam minimizados por uma postura isolacionista da administração Trump e pelo papel central da China na atual pandemia de covid-19. Ainda assim, o papel da OMS e de arenas multilaterais no pós-pandemia será fundamental e, necessariamente, terá que contar com a participação das duas principais potências do sistema internacional no século XXI – os Estados Unidos e a China – para respaldar sua legitimidade.
Claro, auditorias e investigações independentes na OMS, como muitos líderes ao redor do globo têm pedido, devem ser feitas, mas em um momento oportuno e que não crie esta troca de acusações que somente gerará mais instabilidade e incertezas na cooperação para o combate ao vírus.
Em abril, esta postura foi capitaneada por Emmanuel Macron, que reconheceu falhas na gestão inicial da pandemia de covid-19, mas invocou união e coesão neste momento de urgência internacional, posição reforçada pela arrebatadora maioria dos países presentes na septuagésima terceira assembleia da OMS. Virginie Battu-Henriksson, porta-voz de assuntos internacionais na Comissão Europeia, resume bem esta instância: “este é um momento para solidariedade, não para apontar o dedo ou danificar a cooperação multilateral”, afirmou no segundo dia da assembleia.
É difícil realizar previsões sobre o que o futuro guarda, visto que a situação atual é extremamente dinâmica e pode cambiar rapidamente. Os Estados Unidos possuem eleições presidenciais programadas para este ano e várias pesquisas recentes de intenção de voto – CNN/SSRS, Reuters/Ipsos e The Harris Poll/Harvard CAPS – apontam para uma vantagem de Joe Biden, do Partido Democrata, em relação a Donald Trump e uma mudança no poder Executivo norte-americano pode significar grandes alterações no cenário internacional.
Apenas a corrida eleitoral pela presidência norte-americana ilustra esse cenário: em meados de maio, a hashtag #BeijingBiden foi utilizada por Brad Parscale, gerente da campanha de Trump para a eleição de 2020, por suposto tratamento soft do Democrata em relação a China – como ter se negado a acusar a China de ser a fonte do vírus e por apoiar a OMS. Resta ainda aguardarmos os resultados de uma investigação independente prometida por Tedros Adhanom, chefe da OMS. Mudanças e reformas devem e provavelmente irão acontecer no âmbito desse organismo. O que não é concebível neste momento é o abandono do multilateralismo e da procura por soluções internacionais para um problema que não respeita fronteiras e que não será resolvido caso culpados sejam encontrados – ou mesmo fabricados.
(*) Rafael de Moraes Baldrighi é mestrando em Relações Internacionais no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP).
(*) Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito é mestranda em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB).