A crise causada pelo novo coronavírus, que começou com força na Ásia e na Europa, também chegou de forma catastrófica na América Latina, região historicamente marcada por profundas desigualdades socioespaciais. As grandes metrópoles latino-americanas, que já possuem dificuldade de garantir o acesso à direitos fundamentais para suas populações (saúde, água, moradia, dentre outros essenciais), veem esse cenário agravado com a chegada e permanência da pandemia durante meses consecutivos.
Por um lado, as lutas convencionais do direito à cidade, pautadas nas reivindicações por uma democracia participativa urbana e pela fruição plena da cidade, perdem certo espaço no momento atual, pois a questão principal e urgente que se coloca, em especial nas zonas periféricas, onde o vírus se alastra com maior facilidade, é a da sobrevivência.
Sobre o tema, algumas cidades latino-americanas até já adiaram a revisão de seus Planos Diretores Estratégicos que estavam previstos para a primeira metade de 2020. É o caso, por exemplo, de Recife (Pernambuco – Brasil). Por outro lado, é relevante perceber que grande parte das pautas sociais que circundam a questão da pandemia da covid-19 são muito semelhantes, senão as mesmas, das que os movimentos sociais travam há décadas nas disputas pelo direito à cidade.
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Nesse sentido, é relevante observar algumas das problemáticas que envolvem as duas cidades mais populosas da região: a Cidade de São Paulo e a Cidade do México (8,8 milhões de habitantes, respectivamente) durante a pandemia. Inicialmente, cabe ressaltar que a análise comparativa entre ambas cidades se justifica já que, para além das referidas semelhanças demográficas, a ação inicial frente à pandemia do governo central mexicano – liderado por Andrés Manuel López Obrador – e brasileiro – que tem como presidente Jair Messias Bolsonaro – foram semelhantes e acabaram por influenciar as estratégias nos níveis municipais. Assim, ambos presidentes adotaram discursos negacionistas para a crise que já demonstrava sua gravidade no âmbito global. Tal atitude prejudicou uma tomada de decisão rápida e consistente para ações preventivas e emergenciais à disseminação do vírus.
Cabe ressaltar que, além disso, os dois países são, atualmente, os com maior número de óbitos decorrentes da covid-19 na América Latina, segundo dados da OMS de 19 de junho. O Brasil, na liderança, conta com 46.510 óbitos e o México, logo em seguida, com 19.080. As cidades aqui analisadas são também o epicentro da pandemia em seus países. Até 16 de junho, a cidade de São Paulo contabilizava um total de 105.658 casos confirmados, e a Cidade do México, 37.503.
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No caso brasileiro, a autonomia dos estados e municípios permitiu que governadores e prefeitos, incluindo o prefeito da cidade de São Paulo, Bruno Covas, pudessem declarar, desde o fim de março, medidas de isolamento social, a despeito de discursos contrários do governo federal que tem criticado abertamente e deslegitimado os posicionamentos tomados na cidade paulistana, o que, de certa forma, gera impactos importantes na opinião pública e na aceitação da população em relação às medidas tomadas no âmbito local. Já no México, apesar da recente autonomia política conquistada na Cidade do México em relação ao Governo Central, por meio da aprovação de sua Constituição Política em 2017, a chefa do governo da cidade, Claudia Sheinbaum, é aliada do presidente da república, Obrador, – ambos fazem parte do partido Morena – de forma que as medidas adotadas na capital caminham em plena consonância com as diretrizes nacionais. Nesse sentido, a Secretaria Nacional de Saúde do México criou em esfera nacional a “Jornada Nacional de Sana Distancia”, mobilização que adotou uma série de medidas de isolamento social de 23 de março de 2020 até o dia 30 de abril de 2020.
Uma primeira questão de relevância ao se analisar os problemas enfrentados por ambas cidades durante a pandemia, envolve as significativas desigualdades urbanas socioespaciais e os entraves que ditas desigualdades representam para uma resposta eficiente ao coronavírus, sobretudo para as populações mais pobres e marginalizadas da sociedade. Esses grupos vivem, em geral, em locais de grande densidade populacional, muitas vezes em condições precárias de habitação, o que impossibilita ou prejudica a realização de um efetivo distanciamento social. Soma-se a isso, a necessidade que grande parte dessa população tem de continuar trabalhando fora de casa durante a quarentena, por razões econômicas, o que demonstra que as medidas generalizantes de isolamento acabam se tornando seletivas, já que apenas camadas privilegiadas da sociedade têm a real possibilidade de cumprimento.
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Nesse sentido, vemos que os territórios mais empobrecidos sentem, com maior gravidade, as consequências negativas do vírus. No caso de São Paulo, a incidência de mortes nas regiões periféricas já superou a de regiões centrais, onde a transmissão do vírus era inicialmente maior. Brasilândia é o distrito com maior número de óbitos registrados (185 até o dia 20 de maio). Já no caso da Cidade do México, a “alcaldia” (similar à subprefeitura) de Iztapalapa, uma das regiões de maior densidade populacional da cidade, é a que tem o maior número de casos confirmados da covid-19 (6.750 casos e 810 óbitos até o dia 15 de junho, segundo dados oficiais do governo da cidade). Importante destacar que essa região da capital mexicana é uma das que mais sofre com o desabastecimento de água potável, o que afeta aproximadamente 60 mil famílias. Assim, a prevenção da disseminação do vírus é muito prejudicada, catalisando ainda mais o risco de contágio. Cabe enfatizar que o problema antecede a pandemia, já que a Cidade do México sofre há anos com a falta de água em sua zona periférica, tendo que abastecer diariamente regiões como a de Iztapalapa com caminhões pipa.
Destaca-se aí algumas das questões centrais que não são exclusivas dos tempos de pandemia, sendo problemáticas urbanas comuns nas grandes cidades: a desigualdade urbana socioespacial que impacta diretamente a qualidade de vida (e até mesmo o direito à própria vida) dos mais vulneráveis e o acesso adequado à direitos essenciais (moradia e água tratada, nesse caso) que, no momento atual, prejudica a resposta sanitária e o isolamento social, mas que em outras situações, afetam a vida cotidiana de parcela considerável da população.
Ainda, é possível destacar outra problemática que prejudica a contenção do vírus e a criação de respostas para a pandemia: o alto número de mortes e de contágios subnotificados, que invisibiliza a gravidade da doença nas periferias e a falta de assistência às populações mais vulneráveis. Estimativas apontam que no início da pandemia o número de infectados pela covid-19 podia ser até cinco vezes maior do que o divulgado oficialmente no Estado de São Paulo. Já na Cidade do México, jornais como o El País e The New York Times levantaram informações de que o número de mortos seria três vezes maior do que o divulgado oficialmente pelo governo da cidade até o início de maio.
O par desigualdade urbana socioespacial e covid-19 é facilmente notável em outras grandes cidades latino-americanas. Na capital argentina, Buenos Aires, a Villa 31, favela mais antiga da capital, com cerca de 40 mil habitantes, subiu de um caso, ao final de abril, para 500 em meados de maio. Os moradores do bairro fazem denúncias constantes da omissão estatal frente ao crescente aumento do contágio entre os habitantes da região.
Mais uma questão crítica que deve ser trazida nessa breve análise comparativa é o aumento da incidência de denúncias de violência contra a mulher. O período de quarentena e isolamento social tende a aumentar a convivência entre mulheres e seus agressores, e, consequentemente, os casos de agressão. Os dois países possuem um histórico perverso e um alto índice nos casos de feminicídio. Durante a quarentena, canais de denúncia foram mantidos e informações oficiais apontam que, no Estado de São Paulo, ocorrências de violência doméstica aumentaram 20%, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, com base nos atendimentos realizados pela Polícia Militar (entre os dias 20 de março e 13 de abril). Em relação aos casos específicos de feminicídio no Estado de São Paulo, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam um aumento de 46% no mês de março, em relação ao mesmo mês em 2019. No âmbito federal, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos apurou um aumento de 36% das denúncias recebidas pelo Disque 180 em abril (se comparados com o mesmo período de 2019). Já no México, os dados de março surpreendem: foram 26 mil chamadas reportando casos de violência contra mulher no âmbito nacional. O presidente Obrador, contudo, tentou minimizar a situação ao dizer que 90% dessas chamadas seriam falsas. No primeiro trimestre, 720 mulheres foram vítimas de feminicídio no país, e essa crescente violência contra as mexicanas gerou uma série de manifestações, inclusive lotando a praça central da Cidade do México (Zócalo), no Dia da Mulher, em 08 de março.
A respeito das pressões para a retomada da economia, apesar das críticas por parte das autoridades de saúde, Cidade do México e de São Paulo já colocaram em vigor seus planos de reabertura gradativa das atividades produtivas. São Paulo criou um plano de quatro fases de abertura que começou a vigorar a partir de 01 de junho, e que deve ser reavaliado a cada quinze dias, permitindo que, em cada fase, mediante cumprimento de protocolos sanitários, mais atividades econômicas e sociais possam voltar a operar. A cidade já está na fase 02 e começa a se preparar para a abertura de comércios com maior empregabilidade de pessoas e menos riscos de contágio. A última fase, com abertura total das atividades, incluirá escolas e restaurantes. Já na Cidade do México, o plano se estruturou a partir de uma lógica de semáforo, mas com quatro cores (vermelho, laranja, amarelo e vermelho). Em cada fase, assim como em São Paulo, mais estabelecimentos poderão ser abertos. A capital mexicana está na fase vermelha, mas em um processo de “transição ordenada e gradual para o semáforo laranja” quando centros comerciais e hotéis poderão reabrir. Nesses casos, uma abertura precoce poderá ter efeitos catastróficos na incidência da doença, provavelmente com efeitos ainda mais severos para as populações com acesso restrito à saúde e aos demais direitos sociais.
Frente a essa breve análise, resta claro que a luta pelo direito à cidade e pela tomada do espaço urbano pelos diferentes grupos, pode, a uma primeira vista, parecer estar em um segundo plano, por ser considerada como menos urgente no momento pandêmico. A preocupação dos grupos mais vulneráveis com a sobrevivência diária faz com que as lutas cotidianas na cidade percam certo enfoque. Contudo, há de se notar, que existe uma correlação intrínseca entre ambas lutas – a do direito à cidade e aquela de resposta à covid-19 – nas grandes metrópoles latino-americanas, e que se mostra ainda mais urgente por conta da situação atual de crise sanitária.
Nos ambientes públicos de disputas urbanas se pleiteia que a população, e sobretudo a mais vulnerabilizada, tenha garantido seus direitos básicos (acesso à água tratada e potável, por exemplo, conforme explorado neste artigo), de forma que não sejam excluídas e marginalizadas da vida social. No contexto pandêmico essas mesmas demandas, quando ignoradas pela omissão estatal ou ainda pela agenda de formulação e implementação de políticas públicas que não as considera prioritárias, condena milhares de pessoas à morte. Uma possibilidade de superação da crise com menos perdas humanas e sociais e que traga ensinamentos para a posterioridade perpassa, necessariamente, por um olhar mais atento às necessidades e direitos que sempre se fizeram urgentes, em especial para as populações periféricas e grupos vulnerabilizados.
Paloma Gerzeli Pitre é mestranda no Programa de Integração da América Latina da Universidade de São Paulo, Pesquisadora no Centro de Direitos Humanos e Empresas da FGV, representante dos pós graduandos no Conselho Gestor da Cidade Universitária (USP). Estuda a participação nas políticas urbanas da cidade de São Paulo e da Cidade do México.
Kelly Komatsu Agopyan é doutoranda em Relações Internacionais do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) pelo qual também é mestra. Foi assessora para assuntos internacionais da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo. Estuda políticas de direito à cidade em São Paulo e na Cidade do México.