As várias faces do neoliberalismo na América Latina: o PL 529 de Doria
Projeto de Lei apresentado por Doria é um ataque neoliberal que utiliza a justificativa de ajuste fiscal para realizar o desmonte do Estado
O fantasma do neoliberalismo que assombra a história da América Latina tem dado passos largos na nova conjuntura política da região. Após golpes, alternâncias políticas e continuidades dos projetos da direita, a América Latina é atacada novamente por uma agenda neoliberal que coloca em risco a soberania e o desenvolvimento latino-americanos. Em 2019, o avanço dos pacotes do FMI incentivou inúmeros levantes populares, milhares de pessoas foram às ruas no Equador, Chile e Colômbia. Agora, em 2020, com os limites impostos às manifestações pela pandemia, os vários governos da região procuram acelerar as políticas neoliberais.
No Brasil, desde o governo Temer, os avanços do neoliberalismo têm imposto grandes desafios aos movimentos sociais. Em 2019, já no governo Bolsonaro, os ataques se ampliaram com a agenda neoliberal e privatizadora de Paulo Guedes e Weintraub, como, por exemplo, no ataque ao orçamento das Universidades Federais, que colocou em risco seu funcionamento. Diversos setores da educação organizaram uma ampla manifestação contra o governo, com atos que levaram milhares de pessoas às ruas em todo o país – o chamado Tsunami da Educação – refreando momentaneamente os ataques contra as universidades públicas.
A vitória eleitoral da direita nas últimas eleições colocou também na maioria dos governos estaduais defensores da agenda neoliberal, que agora procuram implementar reformas e privatizações, sustentadas no discurso da “austeridade”. A aliança política entre a direita conservadora e a direita neoliberal evidencia que, independente do ator que irá conduzir o processo, existe um acordo no desmonte do Estado e dos serviços públicos encomendado pelo capital internacional, sem impedir, contudo, uma disputa pelo protagonismo do processo, visando obviamente preparar a disputa entre as vários expressões da direita para as eleições presidenciais de 2020. Bom exemplo dessa situação é o governo do Estado de São Paulo. Após a campanha “BolsoDória” de 2018, João Doria procura se diferenciar de Bolsonaro, mas como um melhor executor da cartilha neoliberal.
Processo que Florestan Fernandes denominava como quarto padrão de dominação, quando ocorre um novo tipo de controle interno baseado em interesses externos. Esse capitalismo é corporativista e pode se tornar monopolista, através de associações internas com sócios locais, pressões por mecanismos financeiros e até mesmo corrupção.
A atuação do governador João Doria e seu discurso de austeridade e empreendedorismo se alinham a esse novo tipo de capitalismo, que passa de um imperialismo restrito para um imperialismo total. Hoje, os interesses dessas empresas internacionais estão infiltrados nas camadas sociais e interferem diretamente na educação, na mídia, no padrão de consumo, instituições sociais, tecnologia, investimentos financeiros e inclusive na política doméstica.
Governo do Estado de São Paulo
Projeto de Lei apresentado por Doria é um ataque neoliberal que utiliza a justificativa de ajuste fiscal para realizar o desmonte do Estado
Em meio à pandemia, a sociedade brasileira tem como desafio derrotar duas grandes crises: a da covid-19 e do avanço do neoliberalismo. O projeto neoliberal tem raízes em diversas camadas e forças políticas brasileiras. O Projeto de Lei nº529, apresentado pelo governador Doria em plena pandemia, é um ataque neoliberal que utiliza a justificativa de ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas para realizar o desmonte do Estado.
O projeto possui uma amplitude de destruição, ataca políticas públicas nas áreas de saúde, habitação, transportes, educação, meio ambiente e ciência. O artigo 14 do PL 529 coloca em risco a autonomia das universidades estaduais – USP, Unesp, Unicamp e Fapesp – pois busca intervir no seu orçamento e, consequentemente, no planejamento de gastos dessas. Após fortes mobilizações dos setores da educação foi proposta uma alteração que retira as universidades e a Fapesp do artigo 14, mas mantém parte do ataque por meio de uma disposição transitória que confisca o “superávit” de 2019 das universidades e da Fapesp.
Esse confisco soma cerca de 1 bilhão de reais nas três universidades estaduais (USP, Unesp e Unicamp) e na agência de fomento à pesquisa Fapesp. Recursos fundamentais para a continuidade das pesquisas das universidades públicas paulistas que detêm um papel de destaque na ciência nacional. Ao atacar a autonomia universitária e sua forma de administrar seus recursos, o governo do Estado mostra desconhecer a necessidade de fluxo contínuo de recursos para os projetos de pesquisa. A ciência requer investimentos de longo prazo, assim o chamado “superávit” não significa sobra de dinheiro, mas a garantia de continuidade do funcionamento destas instituições.
É bom lembrar ainda que estes recursos não são resultado de um excesso de investimento, mas foram constituídos dentro de um processo de falta de contratação de pessoal, arrocho salarial e cortes de gastos em diversas áreas. Portanto, a retirada destes recursos de 2019 ampliaria o quadro de desmonte vivido dentro das universidades.
Essa lógica neoliberal, réplica do governo federal, não vê a ciência como um bem comum e sim como um produto que pode ser negociado. Hoje, os movimentos sociais enfrentam uma grande tarefa, mobilizar e barrar o ataque neoliberal que o PL 529 representa. É necessário uma defesa ampla pelo fortalecimento da universidade pública brasileira, pelo avanço tecnológico e pela ciência, etapa essencial para qualquer processo de desenvolvimento nacional. A ciência nacional representa o futuro do desenvolvimento brasileiro, não existe agricultura sem ciência, não existe planejamento urbano, saúde e tecnologia se não existir universidade pública de qualidade.
*Amanda Harumy é doutoranda do PROLAM-USP, professora de Relações Internacionais da FSA e coordenadora geral da Associação de Pós Graduandos da USP Capital.
*Rodrigo Ricupero é professor doutor do Departamento de História da Universidade de São Paulo e presidente da Associação dos Docentes da USP.
