A gripe espanhola é o que de mais próximo temos no registro histórico dos tempos desesperados que vivemos com a covid-19. Há pouco mais de 100 anos, no apagar das luzes da Primeira Guerra Mundial, o mundo enfrentou uma pandemia que matou mais de 50 milhões de pessoas pelo mundo todo.
Por quase dois anos, de 1918 a 1920, a gripe espanhola colocou em pânico o mundo muito em função de seu índice de mortalidade. Se tomarmos o dado de 500 milhões de infectados, o índice de mortalidade fica próximo de 10%.
No Rio de Janeiro, Recife e Salvador (os principais portos de entrada de migrantes na época), a situação foi catastrófica. A pandemia levou um total de 35 mil brasileiros quando nossa população era em torno de 29 milhões de habitantes (0,12% da população).
O impacto da pandemia e a impossibilidade de se encontrar um tratamento efetivo para ela no curto prazo transformava os protocolos sanitários do mundo. No Brasil, por exemplo, a recomendação para a população era “evitar aglomerações, não fazer visitas e tomar cuidados higiênicos”.
Pode parecer estranho hoje, mas naquela época a lógica parecia imperar. Se o vírus passa de pessoa para pessoa, a forma mais fácil de se interromper (ou diminuir) o contato seria o que se chama hoje de “distanciamento social”.
A gripe espanhola nos EUA
Nos EUA, um famoso estudo comparou a performance das cidades de Saint Louis e da Filadélfia com relação ao número de mortes por cem mil habitantes.
Saint Louis, desde o início da pandemia, seguiu um estrito protocolo sanitário. Já a cidade da Filadélfia não acreditou nas medidas de distanciamento e só na primeira semana 4.500 pessoas morreram. Não é possível saber se os políticos da Filadélfia afirmaram que a gripe espanhola seria uma “gripezinha” ou se toda a população de Saint Louis foi menos atingida por “ter um histórico de atleta”. Mas, cem anos depois, historiadores e epidemiologistas concordam que a diferença foi a adoção das medidas preventivas. Na metade de outubro de 1918, horrorizados pelas mortes, a Filadélfia “fechou a cidade”. O estrago, no entanto, já havia sido feito.
Protocolos que funcionam
Protocolos sanitários e sociopolíticos são, portanto, variáveis definidoras do número de mortes numa pandemia. Especialmente nos primeiros momentos, em que o conhecimento médico, biológico e farmacêutico é apenas paliativo. Trocando em miúdos, antes da ciência conseguir, isolar, compreender e encontrar formas de lutar contra o vírus a melhor (e talvez única arma) das populações é o distanciamento social.
Ocorre que tanto lá, em 1918, quanto hoje, o comportamento das pessoas é afetado diretamente pela postura de suas lideranças. Foi somente quando o governo da Filadélfia se convenceu de seu erro e mudou completamente de postura que a cidade pôde reduzir o número de mortes. E não foi por outro motivo que não a postura firme dos governantes de Saint Louis que o fez seu exemplo ser bem-sucedido.
A pandemia hoje no Brasil
No Brasil, estamos lutando contra a pandemia construindo UTIs e sacrificando todo os trabalhadores da saúde. Médicos, enfermeiros, técnicos e o pessoal de apoio estão no limite de suas forças físicas e ainda há quem defenda que é preciso construir mais UTIs e mais hospitais. Que não me entendam mal, sempre é bom mais UTIs e mais hospitais, junto com mais profissionais da saúde treinados e bem pagos. Contudo, esta não é a solução para o Brasil agora.
Se olharmos, por exemplo, o número de mortes por cem mil habitantes dos estados brasileiros e cruzarmos esta informação com o número de UTIs ou com o número de médicos por cem mil habitantes será que encontraremos alguma correlação que nos permita imaginar que construir mais UTIs resolveria o nosso problema?
Pois não é o que os dados mostram. Ao cruzarmos os dados com essas variáveis, nenhuma das duas hipóteses – a dos médicos ou das UTIs – responde pela variação do número de mortos por cem mil habitantes.
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Tanto em 1918 quanto hoje, comportamento das pessoas é afetado diretamente pela postura de suas lideranças
No gráfico acima, por exemplo, os estados com mais número de médicos por habitante são os que têm o maior número de mortes. O teste estatístico indica, portanto, que não adianta ter um número maior de médicos para conter a pandemia. O mesmo ocorre para o número de UTIs por habitantes. Quando relacionada esta variável com o número de mortes, também não há correlação.
De novo, um maior número de UTIs por cem mil habitantes parece indicar um maior número de mortes. O aparente paradoxo somente nos indica aquilo que Saint Louis e a Filadélfia aprenderam em 1918: no início de uma pandemia, antes da ciência conseguir ter tempo de agir, a medicina é paliativa, e não uma solução.
O que então explica o número de mortes?
Neste momento, podem alguns negacionistas estarem exultantes. Afinal, não faltará quem até aqui estiver lendo e compreender erroneamente que a medicina não serve.
De modo algum este texto afirma isso. Apenas que a solução do problema, a medicina ainda não tem. E daí surge a pergunta: como enfim se proteger? A resposta está lá na Saint Louis de 2018. O comportamento sanitário de respeito ao distanciamento funciona e toda e qualquer forma de negação disso mata pessoas.
No Brasil, a variável que está relacionada com o número de mortes por cem mil habitantes é exatamente a votação dos estados no presidente Jair Bolsonaro.
Afora o súbito surto de realidade que o presidente mostrou nesta semana, é notório que Bolsonaro é o líder mundial que mais nega a ciência e mais age contra os protocolos sanitários.
Não é errado presumir pois que protocolos políticos influenciem protocolos sanitários. Quem vota em Bolsonaro acredita em Bolsonaro e, segundo os números, morre mais de covid-19.
O interessante é que o mesmo tipo de associação foi verificada nos EUA. Os Estados que mais votaram em Trump foram os que mais sofreram com as mortes de covid-19.
Na comparação, por exemplo, com os eleitores de Haddad, tomando-se as dez cidades com maiores votações em um candidato ou em outro, as que mais votaram em Haddad têm metade da média de mortos do que as que mais votaram em Bolsonaro. E isso tendo-se em mente que Haddad foi mais votado em cidades mais pobres do Nordeste e com menor acesso a hospital e médicos, enquanto Bolsonaro foi mais votados nas ricas cidades do sul do país.
Seguir Bolsonaro, eis o perigo
O resultado de um pequeno cruzamento de variáveis no Brasil mostra que seguir o presidente significa aumentar tremendamente a chance de morrer de covid-19.
O comportamento político condiciona o comportamento sanitário da população e o incentivo diário que o presidente faz para que seus apoiadores descumpram quaisquer protocolos indicados por médicos e cientistas e avalizados por governadores e prefeitos tem sim correlação com o número de mortes por cem mil habitantes.
O negacionismo dos governantes da Filadélfia, cem anos atrás, levou pouco mais de uma semana. Cerca de 5.000 mil mortes foram suficientes para que os tomadores de decisão lá tomassem medidas efetivas de distanciamento social.
Cem anos depois, no Brasil de Bolsonaro, 300 mil mortos é ainda insuficiente para que o presidente e seu séquito de adoradores compreendam a lição que Saint Louis deu ao mundo em 1918. É um custo muito alto a se pagar pela ignorância alheia.
(*) Fernando Horta é doutor em Relações Internacionais e professor da UnB.