Quando as ruas chilenas se encheram de revolta contra os martírios do modelo neoliberal legado pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) e preservados durante os sete governos democráticos que se seguiram, entre aquelas milhões de pessoas que exigiam uma vida mais digna para todos, em sua maioria jovens cheios de vida por diante, havia também aqueles que carregavam muita coisa vivida nas costas. Representantes das gerações que também conheceram um Chile que se propôs a uma revolução democrática, mais ou menos cinco décadas antes daquele 18 de outubro de 2019.
No começo dos anos 70, chilenas e chilenos elegeram o médico Salvador Allende Gossens como seu novo presidente, por sua promessa de estabelecer o “socialismo democrático à chilena”, com vinho tinto e empanadas.
Milhões de pessoas apoiaram aquela aventura, que, além do mais, acontecia em meio a um cenário global totalmente desfavorável, com uma Guerra Fria entre o polo comunista soviético e o polo capitalista norte-americana – que terminaria sendo fator importante para a sorte do projeto do país andino.
Entre os milhões que apoiaram Allende estavam Jorge Canto e Nelson Nahuel. Na época, eles jovens sonhadores, assim como os jovens que iniciaram esta nova revolta social chilena, há dois anos atrás. Depois de meio século, eles voltam a viver em um Chile que se apresenta ao mundo como uma novidade rara, devido a um processo constituinte conquistado nas ruas e que terá muitos representantes que reivindicam aquele sonho allendista do passado.
Nelson Nahuel
Em 1970, tempos anteriores aos das redes sociais, os estudantes chilenos foram às urnas para eleger um senhor de bigode espesso e óculos com lentes grossas, que os encantou com seu projeto de Unidade Popular. Sua proposta de empoderamento dos trabalhadores o tornou uma espécie de Bernie Sanders da época, um veterano da política amado pelos jovens daquela geração.
Nelson Nahuel era um desses jovens, que liderava a Federação de Estudantes da Universidade do Chile, na cidade de Valparaíso, no litoral central do país. “Eu era um jovem sonhador, como muitos outros, que acreditava naquela ideia de um Chile construído a partir da solidariedade entre os trabalhadores”, recorda o então aluno da Faculdade de Arquitetura, que também era membro da Juventude Comunista nos anos 60.
Aos 82 anos, Nahuel confessa que se emociona quando vê, nas marchas promovidas durante a revolta social, bandeiras ou muros pintados com o rosto de Salvador Allende, e acredita que existe, no movimento atual, uma reivindicação daquele projeto que ele vivenciou quando jovem. “A Unidade Popular foi um dos processos mais bonitos que um povo tentou realizar, infelizmente os militares não deixaram que terminasse sua obra, mas esta geração está tentando recuperá-la”, comenta o ex-militante comunista.
Nahuel vê na presença dos estudantes um ponto de encontro entre a atual revolta social com o clima daquele Chile dos 70. A ação que deu origem ao atual cenário político do país, realizada em outubro de 2019, foi protagonizada pelos estudantes do ensino médio, que saltaram as catracas do metrô contra um aumento abusivo dos preços do transporte público. Algo similar, segundo ele, ocorreu há 50 anos, e permitiu o início do processo allendista.
“Todas as candidaturas presidenciais de Salvador Allende (que perdeu três pleitos anteriores, antes de ser eleito em 1970) foram impulsadas pela força das organizações estudantis. Também foram as entidades mais fiéis ao governo da Unidade Popular. Os estudantes chilenos sempre tiveram uma voz política muito forte, algo que inclusive está registrado em uma das canções de Violeta Parra”, conta Nahuel.
Em seus tempos de líder estudantil, Nahuel organizava junto com seus companheiros da federação da Universidade do Chile encontros culturais que contavam, entre os artistas convidados, com figuras como Víctor Jara, Quilapayún e, claro, a própria Violeta Parra, maior artista popular chilena de todos os tempos, autora de canções que diziam: “me gustan los estudiantes, que marchan sobre la ruina, con las banderas en alto, va toda la estudiantina…”
A aposentadoria adiada de Jorge Canto
Jorge Canto mostra um vídeo no qual se ouve o som de uma flauta, imediatamente acompanhada por um charango, melodias do mundo andino, de alta cordilheira, que logo são reforçadas pelo forte bater de um bumbo, que apoia e marca o tempo, organizando a canção que virá… uma voz pronuncia os versos em marcha…
“Si nuestra tierra nos pide, tenemos que ser nosotros, los que levantemos Chile, así es que a poner el hombro, vamos a llevar las riendas, de todos nuestros asuntos, y que de una vez entiendan, hombre y mujer todos juntos”. Esses primeiros versos do Hino da Unidade Popular servem para refletir o espírito do “socialismo democrático à chilena” promovido por Allende.
Foi um processo que durou três anos e que reunia os sonhos e ilusões de camponeses, operários, mineiros e estudantes. Jorge viveu aquele período enquanto deixava de ser estudante e passava a ser engenheiro.
Jorge lembra que, durante a Unidade Popular, o Chile contava com uma base de trabalhadores que mal entendia o projeto de conformação de um poder popular mais organizado. O governo anterior, do presidente democrata cristão Eduardo Frei Montalva (1964-1970), realizou uma reforma agrária que teve um efeito libertador para milhares de camponeses que viviam em um regime quase feudal.
Natália Espina
Processo de Allende foi interrompido pela mesma ditadura cujo legado pretendem derrubar agora
“Esse processo foi aprofundado por Allende com a sindicalização camponesa de 1970, o que também ajudou a que as classes trabalhadoras das indústrias passassem a ter maior empatia com as do campo”, comentou Canto.
Com a ditadura de Pinochet, todo o projeto político e econômico de Allende foi soterrado. Assim como Nelson Nahuel, Jorge Canto fugiu do país e conseguiu refúgios temporários em Moçambique e em diferentes países da Europa.
Voltou ao Chile nos anos 90, e planejou sua aposentadoria como engenheiro da empresa estatal de mineração de cobre CODELCO, um dos últimos bastiões da propriedade do Estado chileno que sobreviveu às privatizações. Porém, seus planos tiveram que ser adiados por causa da revolta social que ocupou as ruas, como fez a sua geração nos anos da Unidade Popular.
Jorge Canto reconhece que foi uma surpresa para ele, naquele momento de sua vida, ver tanta gente ocupando as ruas. “A abismante desigualdade, a corrupção, a mercantilização da saúde, da educação, das aposentadorias, tudo estava nas mãos do mercado. Tínhamos vários indícios, mas ainda assim, a revolta surpreendeu a muitos, e em um bom momento”, considera.
Diante da revolta transformou o país, Canto preferiu deixar sua aposentadoria para outro momento, e passou a ser mais um entre as centenas de milhares que foram às ruas para cantar e gritar que “o Chile despertou”.
A semente de Allende
Considerando a Unidade Popular de Allende e o processo pós-independência de Moçambique – que ambos viveram estando no exílio – é possível dizer que viver esta refundação do Chile pode ser o terceiro momento revolucionário nas vidas de Jorge Canto e Nelson Nahuel.
Em maio passado, o eleitorado chileno elegeu uma Assembleia Constituinte de 155 integrantes que buscarão terminar com a constituição de Pinochet. Entre os escolhidos, se destacam os representantes de movimentos sociais, coletivos feministas e organizações indígenas e de defensores dos direitos humanos. Os trabalhos dessa constituinte foram iniciados no domingo (04/07), e a previsão é que sejam concluídos até março de 2022.
Quando ele pensa em tudo o que o Chile passou nestes últimos meses, vem à sua memória uma das mais recordadas passagens do último discurso de Allende antes de morrer, quando ele diz que “tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser arrancada definitivamente. Elas têm a força, poderão nos avassalar, mas não vão deter os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e é feita pelos povos”.
Sobre se acredita que este processo atual tem relação com esta semente a qual Allende se referia, Canto afirma que “podemos falar de algumas coisas sobre o que ele disse naquele dia, pouco antes de morrer”. “Eu lembro muito claramente daquele discurso, porque o escutei quando foi transmitido, e chegou a mim como uma mensagem de esperança, de confiança, Allende nos pedia que tivéssemos confiança no futuro, e o que acontece agora no Chile é aquela mesma expressão de confiança no futuro”, disse.
Entretanto, Jorge adverte que esta nova Constituição se fará ainda sob uma estrutura institucional que sofre com uma enorme falta de prestígio. Ele mesmo se formou politicamente em um partido político – o Partido Comunista, um dos que estão melhor representados na Assembleia, embora ele já não seja parte dessa instituição –, por isso opina que estes devem recuperar seu sentido central, para desenvolver melhor suas ideias, aglutinar pessoas em torno delas e concretizar projetos transformadores.
Por sua parte, Nelson Nahuel lembra que, além do processo constituinte, o Chile pode ter outra novidade no final do ano. Em novembro, o país terá eleições presidenciais e um dos favoritos, segundo as pesquisas, é Daniel Jadue, pré-candidato do Partido Comunista, que aparece com percentual sempre próximo dos 20%.
Nahuel, assim como Canto, já não faz parte do PC desde o seu retorno ao Chile, nos anos 90, mas ele acredita que um governo de Jadue seria positivo para o país, desde que esteja antenado com as reivindicações dos movimentos sociais. “O programa dele é bom, está adequado ao que as pessoas estão pedindo nas ruas, que é o fim do modelo neoliberal. Se ele souber governar junto com o povo, pode ser que dê certo, mas terá que saber enfrentar a reação das elites”, advertiu o ex-líder estudantil, que já viveu na pele um golpe de Estado.
Jorge e Nelson ainda têm muita história para contar, mas, por enquanto, eles apenas anseiam que este processo possa potenciar a relação entre as pessoas, recuperar o sentido do coletivo e deixar de lado o salve-se quem puder instalado no país pelo neoliberalismo. “A grande conquista da ditadura foi que as pessoas se tornaram hostis, e passaram a não importar com quem está ao seu lado, e foi ao mudar isso que conseguimos chegar ao que vivemos hoje”, comentam.
O processo constituinte chileno será a oportunidade de escrever uma nova história, a partir da confiança, da ilusão e do trabalho de muitas e muitos. E, sobretudo, ressaltando uma aliança entre as gerações que se encontraram nas ruas, de braços dados, para fazer uma nova onda de “revolução à chilena”.