Historiadoras(es), juristas, sociólogas(os) e pesquisadoras(es) em geral costumam ser insistentes em apontar aspectos importantes normalmente despercebidos de imediato por força da emoção que, via de regra, é propagada entre mentes e corações que protagonizam os mais importantes fatos nos momentos em que a máquina histórica se coloca em movimento.
Por vezes, não querem ser ouvidos, pois nem sempre apontam causas e consequências que contrariam as explanações mais confortáveis. Mas a passagem do tempo possibilita um certo amadurecimento, bem como o clareamento das visões para análises mais consolidadas e embasadas.
Como escreveu Isabel Allende em seu livro “A Casa dos Espíritos” ao descrever as conclusões de uma personagem que retratava uma jovem presa e torturada pela ditadura chilena, é preciso que a relação entre os fatos seja compreendida. A data de 11 de setembro é significativa quanto às lições que se pode tirar a partir de um estudo que considere exatamente a conexão entre os acontecimentos que dela decorrem.
Em 11 de setembro de 1973 os militares, comandados pelo General Augusto Pinochet cercaram e bombardearam o Palácio de La Moneda, sede do governo democraticamente eleito pelo povo chileno e que conduziu o socialista Salvador Allende ao poder. As cenas do bombardeio e do ataque são dramáticas e podem ser vistas nas redes sociais, em fotos e vídeos históricos.
Allende, munido de um espírito de estadista, raro de ser encontrado nos dias que correm, opta por permanecer e defender o Palácio e a democracia com armas em punho e acompanhado de um grupo leal ao Presidente. O que se seguiu foi uma ditadura violenta responsável por milhares de crimes lesa-humanidade, com mais de 3 mil mortos ou desaparecidos, milhares de prisioneiros desaparecidos e cerca de 200 mil chilenos exilados.
Além disso, modelou o Chile atual que, apenas recentemente, elegeu uma nova constituinte para escrever sua nova Constituição, revogando assim o texto ditatorial do período Pinochet, aprovado por meio de plebiscito em 11 de setembro de 1980 (notem aí mais uma vez a data com seus significados) e que entrou em vigência em 11 de março de 1990.
Importante também lembrarmos que em 16 de outubro de 1998, por ordem do juiz espanhol Baltazar Garzón, o ditador Pinochet em tratamento de saúde na London Clinic, no bairro de Marylebone, recebeu a visita do agente Andrew Hewitt (Scotland Yard) e que lhe deu voz de prisão, em cumprimento à ordem do referido magistrado. Tal fato é hoje um case estudado nas Escolas de Direito de todo o mundo, especialmente importante também para o desenvolvimento do Direito Penal Internacional e a conscientização acerca da inaceitabilidade do argumento da imunidade diplomática e de chefes de Estado para que um .acusado pelos crimes internacionais se veja isento de punição.
A ditadura chilena, sabe-se hoje, foi instaurada por um golpe de Estado apoiado pela Central Americana de Inteligência (CIA), sob o contexto da bipolaridade da guerra fria. Ainda mais, tal como revelado há poucos dias, a Austrália enviou espiões ao Chile, que lá abriram escritório de apoio à CIA na interferência e derrubada do governo legítimo de Salvador Allende.
Os memoriais hoje existentes no Chile e a interferência da CIA na consolidação de um regime sustentado sobre crimes contra a humanidade demonstra como a liberdade e a soberania de um povo que democraticamente escolhera seus representantes era comumente destruída mediante apoio de potências ditas “democráticas” e defensoras da liberdade, tal como ocorrera nove anos antes, no Brasil, como demonstra o documentário “O Dia que Durou 21 Anos”, de Camilo Tavares (2013).
O legado autoritário ainda permanece no Chile, com a repressão violenta às atuais manifestações de um povo que busca justiça social. Ainda assim, presidida por uma mulher originária da nação indígenas Mapuche (filhos da terra), a nova constituinte chilena deverá legar um texto magno que simbolizará a ruptura com o regime de Pinochet que, como noticiado pela imprensa mundial, enriqueceu com desvio de cerca de 17 milhões de dólares durante sua ditadura, enviados ao exterior.
Vinte e oito anos depois, o mundo se viu aterrorizado pelos terríveis atentados contra os símbolos econômico e militar da potência mais poderosa, à época, no mundo, concretizados na destruição do World Trade Center (WTC) em Nova York e do Pentágono, em Washington D.C.
Os terroristas da Al-Qaeda, apoiados pelo regime Talibã somente não lograram êxito no ataque ao símbolo político dos EUA, qual seja, o Capitólio, que seria também um dos alvos, porque as/os passageiros do voo United 93 decidiram se sacrificar ao tentar dominar a aeronave ou, na pior das hipóteses, derrubá-la ao atacarem a cabine do avião, então sob a posse dos terroristas. Afinal, tombaram com a queda do voo no Condado de Somerset County, Pennsylvania, evitando que o Congresso Americano fosse alcançado na tentativa de ataque terrorista.
As consequências do maior ataque terrorista da história, para o mundo, até hoje se fazem sentir em face das decisões erradas adotadas pelo então Presidente George Bush e sua administração. Iniciada a guerra do Afeganistão em 2001 para derrotar os Talibãs que abrigavam – e se recusaram a entregar aos EUA – o líder da Al-Qaeda Osama Bin Laden, com o tempo, os erros dos EUA começaram a surgir.
Recorde-se que a guerra contra ao Afeganistão foi chancelada pelas Nações Unidas e pela OTAN. Logo os talibãs estavam afastados do Poder, mediante apoio dos EUA à Aliança do Norte, grupo que combatia o regime Talibã, além da invasão direta do país pelas tropas norte-americanas.
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Quase 30 anos separam os eventos que ocorreram no Chile e nos EUA no dia 11 de setembro
Entretanto, em 2003 foi lançada a guerra contra o Iraque – cujo regime não guardava qualquer relação com os autores do atentado de 11.9.2001 – além de ter sido justificada em razões falsamente apresentadas pelo governo Bush (por exemplo, armas de destruição em massa nunca encontradas), informação obtida após intensas torturas praticadas contra prisioneiros detidos na prisão de Guantánamo.
A decisão reduziu tropas no Afeganistão, efetivamente desencadeou um autêntico “estado de exceção” (ausência do Estado de Direito e do devido processo legal) no mundo, que passou a vigorar sob a visão da famigerada “guerra ao terror”.
As imagens das torturas cometidas pelas forças armadas norte-americanas nas prisões de Guantánamo (Cuba) e de Abu Ghraib (Iraque), até hoje assombram quem as vê; muitas das vítimas torturadas eram camponeses pobres destes países invadidos pela coalizão ocidental, detidos sem qualquer acusação formal, alijados da proteção das Leis de Genebra, com fundamento em pareceres de autoria dos advogados do governo Bush. Dir-se-ia que Guantánamo não era um “lugar”, mas um “conceito”.
No plano jurídico, o Patriotic Act oficializava poderes ilimitados a George Bush e sua equipe que pouco se importaram com a Constituição norte-americana. As tais “técnicas avançadas de interrogatório” consistiram em tortura e barbárie, pura e simples. Centenas de inocentes foram torturados, conforme demonstra o relatório apresentado pela Senadora norte-americana Dianne Feinstein, em 9 de dezembro de 2014.
O Direito e a liberdade encontraram seu epitáfio por meio de uma resolução com 60 palavras: “…o Presidente está autorizado a usar toda força necessária e apropriada contra aquelas nações, organizações ou pessoas que ele determinar ter planejado, autorizado, engajado ou ajudado nos ataques terroristas que ocorreram em 11 de setembro de 2001, ou que tenham abrigado tais organizações ou pessoas, com fim de prevenir futuros atos de terrorismo internacional por tais nações, organizações ou pessoas”.
Na ocasião, apenas uma pessoa se manifestou e votou contra: a congressista Barbara Lee, a primeira chearleader negra na história do país, que dizia: “…é um cheque em branco…”. Acostumada a lutar contra o racismo nos EUA, desde criança, não tinha medo da impopularidade. Foi ameaçada de morte centenas de vezes por seu posicionamento, à época chamada de traidora.
A frase “…usar toda força apropriada e necessária…” selaria o destino de milhões de pessoas inocentes que viriam a perecer nas guerras do Afeganistão e do Iraque; nos centros de tortura clandestinos espalhados por vários países, muitas que não guardavam qualquer relação com os atentados tão terríveis e cruéis de 11.9.2001.
O desfecho, já conhecemos: a violência retornou atualmente ao Iraque e o Talibã, identificado já em 11.9.2001 como parceiro da Al-Qaeda, retorna vitorioso ao Poder no Afeganistão, inclusive mantendo certa relação com os EUA e inaugurando uma nova era de incertezas sobre o renascimento do terrorismo internacional e de certezas sobre o triste destino que aguarda suas mulheres, que já foram livres antes no período que precedeu a invasão soviética o país e ao longo do vinte anos de presença ocidental.
É este o ponto central cuja atenção desejo provocar: os talibãs (estudantes) têm origem na resistência armada religiosa islâmica denominada Mujahedin, treinados, armados e apoiados com armamentos que fizeram a diferença na guerra contra o Exército Vermelho entre 1979 e 1988, exatamente pelos Estados Unidos. Osama Bin Laden foi também apoiado pelos Estados Unidos neste contexto.
O que os Estados Unidos e o Ocidente não consideraram foi o processo de radicalização em algumas escolas islâmicas que recebiam crianças e jovens empobrecidos e marcados pelas guerras na região, denominada Madrassas, algumas localizadas no Paquistão.
É importante notar que a data de 11 de setembro, tanto no caso chileno, quanto norte-americano, é marcada pelo terrorismo como elemento comum: no Chile de Pinochet, pelo terrorismo de Estado, a primeira espécie que surge na história da humanidade com a Revolução Francesa (1789) e período no qual o termo terrorismo foi cunhado; no contexto dos ataques aos EUA em 2001, pelo terrorismo islâmico de orientação sunita e wahabista.
Mas em ambas as situações históricas, tanto no golpe contra Salvador Allende, quanto no fortalecimento dos Mujahideen, dos Talibãs e da própria Al-Qaeda, a iniciativa norte-americana foi fundamental.
Ainda pior, retorna-se a um cenário de exceção e de terrorismo de Estado, tanto no plano internacional quando no âmbito doméstico norte-americano, com o desencadeamento da “guerra ao terror”, que torturou e matou; que ainda mantém detidos em Guantánamo, por vinte anos, sem julgamento.
Não se pode subverter o Estado de Direito e o devido processo legal. O resultado jamais é bom. A democracia e a liberdade, atualmente, encontram-se restringidas. Retornando ao ponto inicial deste artigo, é preciso entender a relação entre os fatos históricos, para compreender as razões de sermos, atualmente, mais vigiados e por vivermos mais sob o medo. Não se pode abrir mão do Estado de Direito em momentos de dor e forte emoção. A história não tarda em apresentar a conta.
Como recitou o Reverendo afro-americano Nathan Baxter, então antigo Reitor da “Washington National Cathedral”, 3 dias após os atentados, em cerimônia de homenagem às vítimas do 11/9: Que enquanto nós agirmos, não nos tornemos o mal que deploramos.