A participação afinal frustrada do número 1 do tênis profissional mundial, Noval Djokovic, no principal torneio da Austrália, se tornou um tema quente no noticiário internacional, provocou intensas polarizações e, por isso mesmo, pode ser uma oportunidade para compreender a complexidade das relações sociais e políticas de um mundo pós-pandêmico.
Parêntesis inicial para dizer que a noção de um mundo pós-pandêmico deve ser compreendida num sentido mais preciso e diferente – oposto, na verdade – a sua significação usual. Até agora falamos de um pós-pandemia como um momento em que tudo voltaria a ser como antes, um retorno à normalidade.
Tudo indica que vale a pena pensar a pandemia como um novo marco temporal, indicador de mudanças qualitativas e estruturais nos valores, nas esferas sociais e políticas, na economia e nos modos de vida, assim como falamos em pós-guerra, em pós-revolução francesa ou em pós-queda do muro.
Se nada será como antes, então também teremos que atualizar nossos próprios vieses de confirmação ou negação.
As voltas novelescas do affair foram bastante divulgadas. Anti-vacina assumido, como de resto outros astros do esporte, Djokovic entendeu, juntamente com os organizados do Australia Open, que sua condição individual mais um atestado médico de contaminação prévia seriam suficientes para garantir sua entrada num dos países com medidas mais restritivas à entrada de estrangeiros não vacinados.
A negativa de acesso pela imigração australiana e sua reclusão em um hotel para pessoas em sua condição coincidiu com uma tremenda mobilização judicial, esportiva e política em todo o mundo.
Havia as razões esportivas. Uma eventual vitória neste torneio do Grand Slam, seria a 21ª de sua carreira e faria dele o maior campeão de todos os tempos. Hoje há um tríplice empate em 20 títulos com o espanhol Rafael Nadal e o suíço Roger Federer.
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Justiça australiana negou entrada do tenista por não apresentar vacinação contra a covid-19
A transcendência esportiva e a enorme frustração, não apenas do tenista, mas de todo o interesse comercial que cercava a possibilidade do recorde ajuda a entender as manifestações de colegas tenistas, a favor, contra e muito pelo contrário.
Fora do âmbito esportivo ocorreu a inevitável polarização. Na ponta direita do outro lado do planeta, Eduardo Bolsonaro elogiou o tenista que “optou pela liberdade e se converteu num líder mundial”. O presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, também pegou carona para dizer que se tratava de uma afronta ao país e declarar que este estava aberto ao tenista… que mora em Monte Carlo.
Na Austrália, pesou o fato de que o atual primeiro-ministro, Scott Morrison, vem perdendo a vantagem que tinha nas pesquisas frente à oposição trabalhista nas eleições marcadas para daqui a quatro meses. A temida reação de uma população que enfrentou umas das políticas de distanciamento social mais duras do planeta face à possibilidade de exceção para uma celebridade, obviamente determinou a atuação do governo.
Até onde se sabe, Djokovic é um negacionista new age, natureba como tantos filhos da geração baby boomer e não um cripto fascista. Com a repercussão mundial, que inevitavelmente jogou holofotes sobre a posição que tomarão a França, a Inglaterra e os Estados Unidos, seu ingresso nos próximos grandes campeonatos é uma incógnita.
Convicções pessoais versus enormes interesses financeiros e contratos com patrocinadores serão os próximos capítulos da disputa que mostra que a pandemia veio redefinir a relação entre liberdade individual e responsabilidade social.
Por sorte não temos um Torneio de Brasília economicamente atrativo para o jet set do tênis.
(*) Carlos Ferreira Martins ´é professor titular do IAU USP São Carlos.