Pato manco, lame duck em inglês, é uma expressão do jargão politico norte-americano, que se refere a governantes após a eleição de seu sucessor, ou seja, a quem restou pouca capacidade de comando.
No momento, a expressão parece estranhamente adequada a Joe Biden, alguém em teoria distante da reeleição ou eleição de seu sucessor. Mas tem sido aplicada pela enorme dificuldade em levar adiante seu ambicioso programa de estimulo à economia norte-americana, o que o deixa, ao que tudo indica, destinado a uma derrota nas eleições legislativas intermediárias que ao final deste ano.
Num sistema eleitoral em que a reeleição presidencial é quase uma regra não escrita, Biden, com apenas um ano de mandato cumprido, já ser considerado pato manco é uma novidade no sistema político norte-americano. E essa notícia não parece alvissareira para quase ninguém além dos republicanos, do trumpismo e daquela obscura zona de poder chamada deep state, ou complexo industrial militar.
Para quem pouco sabe das idiossincrasias do sistema político da potência do norte, além da estranheza de que presidentes podem ser eleitos mesmo perdendo na soma dos votos populares ou da acrítica referência da grande mídia à “maior democracia do planeta”, os próximos meses e anos poderão ser um período de grande aprendizado. O que não quer dizer, necessariamente, boas notícias.
O atual empate entre republicanos e democratas no Senado, com o voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris, não foi suficiente para que Biden conseguisse levar adiante o programa de estímulo econômico que poderia, em tese, viabilizar um fortalecimento político dos democratas e, quem sabe, até sua reeleição ou eventualmente a de seu sucessor.
Curiosa e tragicamente seu pacote econômico está inviabilizado por dois senadores de seu próprio partido, divergentes da orientação partidária e governamental em torno do mecanismo do filibuster, uma espécie de direito de obstrução, em tese exercido por parlamentares de partido minoritário.
White House
Joe Biden completou um ano de governo nos Estados Unidos com baixa popularidade
Originalmente, o recurso do filibuster significava que um senador podia retardar a aprovação de um projeto usando a palavra por tempo indeterminado. Posteriormente, se estabeleceu que a obstrução pode ser interrompida se houver o voto de 60 senadores, o que é claramente inalcançável no quadro atual.
O governo Biden tentou então usar a maioria simples que ainda detém no Senado para mudar a regra. Mas foi aí que tropeçou em Joe Manchin e Kyrsten Sinema, dois senadores de seu próprio partido que não abrem mão do procedimento.
Na prática, isso significa que Biden não conseguirá implantar os pacotes de estimulo à economia e, ainda mais importante, não conseguirá aprovar a legislação federal sobre direito de voto que impediria as manobras em andamento em boa parte dos estados governados por republicanos para impedir os votos dos setores da população, especialmente negros e latinos, que tenderiam ao voto nos democratas.
O que está em jogo é o fim das perspectivas de alternância de poder, a volta de Donald Trump ou alguém pior (sim, sempre é possível) e derivas autoritárias de que a tentativa de invasão do Capitólio foi apenas uma mostra.
A se confirmar esse quadro, talvez não seja apenas Biden o pato manco, mas a própria potência que dominou o planeta ao longo do século XX, assim como sua imagem de campeão do “mundo livre”.
Para além da ascensão econômica e tecnológica da China, temos na explicitação da crise estrutural da “democracia” mais um elemento do aparentemente irreversível declínio do império norte-americano. Lento, certamente, mas continuo e potencialmente muito perigoso.
Porque não existe maior tentação para um governante (ou um império) encurralado do que unificar a população através de uma guerra.
(*) Carlos Ferreira Martins ´é professor titular do IAU USP São Carlos.