O Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) voltou a ser objeto de atenção do mundo. Nos últimos anos, o grupo passou por desafios como desavenças na fronteira entre China e Índia, perda de dinamismo econômico no Brasil e Rússia e mudanças na política externa de alguns membros, que contribuíram para minar seu peso geopolítico. No último mês, porém, as posições assumidas por cada um dos Estados na guerra na Ucrânia e especulações sobre a entrada da Argentina no grupo indicam o fortalecimento de sua posição.
O fato de os demais membros do Brics, exceto a Rússia, não apoiarem sua intervenção militar, mas também não aprovarem as posições da Otan e seus aliados, ganhou destaque. Além disso, todos os países do Brics rejeitam firmemente as sanções econômicas e defendem que é preciso achar um acordo de paz que contemple as legítimas preocupações de defesa de todos os envolvidos.
As abstenções da China, África do Sul e Índia nas votações na ONU para condenar a Rússia nos termos ocidentais e as ressalvas expressas pelo Brasil, embora tenha votado a favor em algumas resoluções, podem ser vistas como um obstáculo ao plano adotado pelas forças lideradas pelos EUA de aproveitar a guerra para reforçar sua hegemonia.
Em declaração divulgada 14 de abril, os Brics incentivaram o diálogo Rússia-Ucrânia para a resolução do conflito, lamentando a situação humanitária ucraniana. Manifestaram também preocupação com o impacto que as sanções podem provocar para a recuperação econômica global, principalmente para os países em desenvolvimento. Embora o grupo Brics não seja terreno para os países membros coordenarem sua política diante da guerra, seus posicionamentos comuns chamam a atenção.
Em primeiro lugar, está a rejeição das sanções, que atingem fatalmente os países e camadas mais pobres pelo mundo afora, e não têm nenhum efeito no campo de guerra. Em segundo, todos pregam a necessidade de reconhecer que um acordo de paz exige levar em consideração as legítimas considerações de segurança de todos os envolvidos. E, em terceiro, há uma rejeição forte, sobretudo na Índia e na África do Sul, à tentativa de usar a guerra para enquadrar os países do Sul Global aos interesses ocidentais.
A falta de uma veemente condenação da Rússia pelos demais membros do Brics tem gerado pressões por parte de países europeus, EUA e Otan para que assumam posição crítica. O governo estadunidense tem mostrado preocupação com o comportamento indiano. Na última reunião de Joe Biden e Narendra Modi, em 11 de abril, os EUA abordaram a possibilidade de redução da taxa de importação do petróleo russo por parte da Índia. Subrahmanyan Jaishankar, Ministro de Assuntos Exteriores da Índia, respondeu que o petróleo que seu país importa em um mês é menos do que a União Europeia importa em uma tarde. A União Europeia tem feito constantes pressões sobre a África do Sul. Com relação ao Brasil, o Secretário de Estado dos EUA chegou a telefonar ao seu par brasileiro para abordar a questão.
Se considerados os princípios do Brics, reafirmados constantemente em suas declarações, como na Declaração de Nova Delhi, do ano passado, a deflagração da guerra pela Rússia indica um alinhamento contraditório aos objetivos do grupo, uma vez que, no parágrafo 2,º é afirmada a “igualdade soberana de todos os Estados e o respeito por sua integridade territorial”. Além disso, as violações russas do direito internacional e direitos humanos ferem também essas declarações e os Brics sempre se colocaram contra o arbítrio internacional determinado pela força de sanções de grandes potências.
O que percebemos, então, é que diante de uma realidade internacional imperfeita, na qual as armas usadas pelo Ocidente para lidar com o conflito, principalmente sanções e tentativas de estrangulamento da Rússia, também são, histórica e frequentemente, usadas contra países do mundo em desenvolvimento por variados motivos. E, desta forma, os Brics – cada um por seus motivos próprios, não por resolução de grupo – optaram por não dar munição a tais propostas. As posições dos países, assim, de não condenação aberta da Rússia são individuais, mas claramente convergentes com relação a crítica às sanções.
Essa convergência, porém, não significa que os Brics superaram os desafios que limitaram sua atuação conjunta na política internacional nos últimos anos, mas a postura indica que – por ora – a posição de cada um dos países do grupo tem contribuído para dificultar o isolamento russo, principal objetivo da Otan e dos EUA. E, mais importante, demonstra a vontade dos membros de defender maior autonomia para o Sul Global e, paradoxalmente, o pós-guerra na Ucrânia pode estimular uma retomada da importância dos Brics.
A posição sul-africana: sem esquecer a história
A África do Sul tem optado por se abster nas votações que condenam a Rússia e suas declarações oficiais são semelhantes às do governo russo ao evitar termos como “agressão” e “invasão”. Embora o ministro das Relações Exteriores sul-africano Naledi Pandor inicialmente tenha ensaiado uma condenação à Rússia, o Congresso Nacional Africano (ANC) e Pretória forçaram uma mudança na posição.
Tradicionalmente, a África do Sul tem posicionamentos críticos sobre intervenções externas: condenou a ocupação da Palestina por Israel e a atuação da Otan na guerra da Líbia. Dentre os pilares adotados pela política externa do presidente Cyril Ramaphosa, desde que assumiu o cargo em 2018, estão princípios como a defesa da democracia, direitos humanos e justiça, buscando uma linha de atuação que remonta a Mandela. Ou seja, uma África do Sul neutra diante de violações seria contraditória e incoerente com seus próprios valores. Como, então, entender a atual posição do país?
Palácio do Planalto
Presidentes dos Brics em 2019: guerra na Ucrânia é chance para retomar protagonismo?
A Rússia não está entre os principais parceiros comerciais do país, mas uma questão que chama a atenção é o histórico da antiga URSS com o Congresso Nacional Africano (ANC) nos anos oitenta. Na Guerra Fria, Moscou deu apoio militar e financeiro para movimentos de liberalização no continente africano, como o a ANC, durante o Apartheid. Além da África do Sul, no continente apoiou o MPLA de Angola e o FRELIMO de Moçambique, países que também se abstiveram nas votações de resoluções propostas na ONU.
A postura sul-africana também é motivada pelo sentimento anti-imperialista característico da ANC, tendo em vista que o atual presidente chegou a declarar que a guerra poderia ter sido evitada se a Otan tivesse considerado um possível aumento de instabilidade na região por causa de sua expansão no Leste Europeu. Nessa mesma declaração, insistiu na mediação e neutralidade, afirmando que, apesar da insistência de muitos, não tomaria partido contra a Rússia e que, em vez disso, buscaria o diálogo. A África do Sul tem em seu histórico o fato de ter sido objeto de sanções internacionais e, por experiência, considera o uso desse instrumento inadequado para resolver o conflito e que provoca danos – inclusive a terceiros países – maiores do que os ganhos a serem alcançados pela coletividade.
A posição da Índia
A Índia também se absteve nas votações da ONU para condenar a ação russa. Mesmo em uma situação tensa no cenário internacional, mantém diálogo bilateral com a Rússia. O ministro das Relações Exteriores da Rússia visitou o país e conversou com o seu homólogo S. Jaishankar e com o primeiro-ministro Modi.
A postura independente com relação ao conflito está ligada tanto a interesses práticos, quanto à sua tradição diplomática. Assim como na África do Sul, suas relações de cooperação foram estreitadas na Guerra Fria. Não é a primeira vez que a Índia se abstém com relação aos conflitos territoriais da antiga União Soviética. Em 2014, com a anexação da Crimeia, o posicionamento indiano também foi de abstenção.
A Índia tem muitas questões de segurança com o Paquistão e a China. Ainda em maio de 2020, houve um confronto militar na sua fronteira com a China. A histórica cooperação com a Rússia, assim, é parte essencial da sua estratégia de defesa. Outro elemento que pesa é a forma com a qual os EUA e o Reino Unido, antigo poder colonizador, exigem da Índia um alinhamento automático a suas posições frente à Rússia. Isso causou revolta na diplomacia e entre os formadores locais.
Economicamente, a Índia é o maior comprador de armamento russo. Nos últimos cinco anos, cerca de 23% das exportações bélicas da Rússia foram adquiridas pela Índia no valor aproximado de 6.5 bilhões de dólares, cerca de 60% do armamento indiano. Além da questão bélica, há a suposição de que o país também esteja se beneficiando com a compra de petróleo russo mais barato, chamando a atenção das forças ocidentais, uma vez que desde o início do conflito a compra de petróleo russo pela Índia já alcançou a marca de 16 milhões de barris. Ainda há a cooperação em energia nuclear, incluindo a construção de novas unidades da usina nuclear de Kudankulam, cidade localizada no sul da Índia.
E o Brasil?
O Brasil se manteve firme na posição contra as sanções e em defesa de uma abordagem que visa a negociação possível. O país votou a favor da resolução que visava condenar a invasão na Assembleia Geral da ONU, mas participou nas negociações nos bastidores para abrandar a linguagem. Também não assinou uma declaração patrocinada pelos EUA que foi emitida logo após a votação para enfatizar a resolução. Ao contrário, o embaixador Ronaldo Costa Filho deu uma declaração de voto com ressalva e fez pesadas críticas à forma como o Ocidente – leia-se EUA – propôs lidar com a situação. Ou seja, apesar da pressão de alguns setores no Brasil, com destaque para veículos de imprensa que têm reproduzido a visão anglo-saxã sobre a guerra, o país não apoiou o cerco contra a Rússia liderado por países da Otan e seus aliados na Organização Internacional do Trabalho e na Organização Mundial do Comércio.
(*) Flávia Mitake Neiva, Vitor Hugo dos Santos, Ana Luísa da Cunha e Lais Pierini Pina são membros do OPEB (Observatório de Política Externa Brasileira) é um núcleo de professores e estudantes de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC que analisa de forma crítica a nova inserção internacional brasileira, a partir de 2019. Atuando como think tank e plataforma de conteúdo, promove cursos e palestras, publica livros e uma newsletter quinzenal sobre dez temas, coordenados por referências nos debates sobre América Latina (Gilberto Maringoni), Brasil – China (Ana Tereza Marra e Giorgio Romano), Brasil – EUA (Tatiana Berringer), Comércio Internacional (Lucas Tasquetto), Direitos Humanos e Migração (Gilberto Rodrigues), Meio Ambiente e Agricultura (Diego Azzi e Olympio Barbanti Jr.), Inserção Econômica Internacional (Giorgio Romano), Políticas de Defesa (Flávio Rocha), Relações com o Continente Africano (Flávio Thales e Mohammed Nadir) e Arte e Informação (Mathias Alencastro).