Wuhan, três anos depois: a China na pandemia e os dilemas da economia política mundial
Cidade chinesa relembra fim do lockdown que deu início a uma 'guerra de narrativas', transformando pandemia em uma questão da economia política mundial
Wuhan relembra neste sábado (08/04) o fim de 76 dias de lockdown no começo de 2020. Há exatos três anos, a cidade chinesa que ficou conhecida no mundo como o primeiro epicentro do novo coronavírus foi reaberta após passar por medidas emergenciais de isolamento social, testagem em massa, rastreamento e tratamento dos infectados.
O procedimento serviu de modelo das ações de política pública adotadas nos surtos posteriores na China, dando vazão à estratégia de "Covid Zero" e seu caráter dinâmico, com aprimoramento da abordagem em termos de tempo e espaço. De um lado, para o governo chinês, a rigidez no combate à disseminação do coronavírus é uma demonstração cabal da superioridade do sistema político e do modelo econômico no país, tido como socialismo de mercado.
De outro, para o chamado Ocidente é exatamente o contrário. Os chineses não apenas falharam em lidar com o contágio da covid-19 entre as pessoas, como o fracasso em controlar toda a cadeia de infecção da doença acabou resultando na declaração de pandemia de coronavírus. O anúncio veio em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de três meses após receber notificação da Comissão Nacional de Saúde chinesa (NHC, na sigla em inglês) sobre uma doença ainda misteriosa causadora de “casos de pneumonia de etiologia desconhecida”.
Portanto, tem-se assim uma “guerra de narrativas” em torno da questão de saúde pública que horizontalizou o mundo diante de uma mesma emergência global, ganhando contornos no âmbito da economia política mundial.
Com isso, três anos após a reabertura da cidade conhecida como “a China em miniatura”[1], o distanciamento temporal permite compreender as diferentes posturas frente ao “novo normal” no que se considera ser um mundo pós-pandemia e os desafios para além do Sul Global.
Dito isso, compreende-se que, vencida a batalha contra o coronavírus, o mundo não continuará sendo como é nem como era antes do surgimento da covid-19. Tampouco se considera que nada será como antes. No cenário pós-pandemia que se abre surgem outras ameaças globais, diante da tendência do mundo de se deparar com “inimigos” comuns.
A China na pandemia
A pandemia do coronavírus foi o primeiro grande desafio da era Xi Jinping, tanto que o presidente chinês classificou a doença como um “inimigo invisível”[2] e convocou uma “guerra do povo” para o enfrentamento da doença, dizendo que era a epidemia de maior ritmo de disseminação, envergadura de infecção e dificuldade de controle e prevenção que a “Nova China” já enfrentou desde a sua fundação, em 1949.
O que estava em risco não era somente a vida da população, mas a própria sustentação da China enquanto nação vitoriosa na luta anti-imperialista que emergiu com a vitória dos comunistas liderados por Mao Zedong após um século de humilhação diante do domínio de potências estrangeiras. Não se tratava, portanto, do falso dilema imposto pelo Ocidente, entre vida e economia - como se as pessoas tivessem de escolher entre viver ou ganhar dinheiro. Mas, sim, de uma nova tentativa de subjugação por forças externas.
Porém, o alto grau de envolvimento da sociedade e o encadeamento dos agentes econômicos com o poder público, legitimando a capacidade de gestão exercida pelo Partido Comunista Chinês (PCCh), resultou na eficácia[3] da resposta da China na luta contra o coronavírus.
A “vitória decisiva” na pandemia só foi possível porque a China vê na ciência e na tecnologia as bases para se pensar o processo social enquanto uma construção histórica, conforme a teoria clássica.
Essa forma de combate esmiúça o funcionamento do sistema político e do modelo econômico do país, mostrando a superioridade de uma “política de comando” e uma “economia de prontidão” do ponto de vista da gestão de crise, quando comparado às democracias liberais ocidentais e ao modo de produção capitalista. As estatísticas oficiais[4] evidenciam o cerne dessa discussão.

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Wuhan ficou conhecida no mundo como o primeiro epicentro do novo coronavírus
Afinal, o até então país mais populoso do mundo, em seu território continental (exceto Hong Kong e Taiwan), representa percentuais inferiores a 0,2% frente aos mais de 760 milhões de casos globais de covid-19 e aos quase 7 milhões de óbitos pela doença até o início de abril de 2023. Assim, a pandemia oferece a oportunidade de inserir a experiência do socialismo com características chinesas no cenário global.
Mais que isso, tal análise abre o debate de que não existe um único caminho político-econômico para o mundo. Portanto, basta um olhar atento para perceber que ao tratar da pandemia, o pano de fundo é a economia política mundial. Tal entendimento coloca em lados diametralmente opostos as duas principais potências hegemônicas atuais, sendo os Estados Unidos em decadência, e a China, em ascensão. Essa disputa, porém, ignora os problemas intrínsecos dos EUA, alimentando a narrativa do bem contra o mal - no caso, o “inimigo externo” a ser aniquilado e demonizado.
Bem-vindo ao “novo normal”
A resposta da China a uma crise de saúde pública de grandes proporções, diferente em relação a boa parte dos países “ocidentais”, trouxe de volta à tona a discussão sobre capitalismo e socialismo, que parecia ter sido superada desde a declaração sobre “o fim da história”[5]. Esse entendimento coloca a China na vanguarda das transformações vindouras, com o sistema político e o modelo econômico chinês se reafirmando diante das crises do século XXI e dos desafios do novo milênio.
Isso porque a pandemia de coronavírus intensificou o debate global sobre desenvolvimento sustentável, que já vinha pautando as relações internacionais, enfatizando ainda mais o “consumo verde” e o baixo uso de carbono. Afinal, a vulnerabilidade do ser humano a doenças acelerou o curso das contradições da economia mundial, ao realçar a ligação direta entre os desastres ambientais, as mudanças climáticas e a cultura do hiperconsumo. Ou seja, a necessidade de acumulação sem fim de capital e do crescimento exponencial da produção e do consumo de bens materiais evidenciam o esgotamento do projeto de modernidade ocidental, depois de pelo menos 200 anos de hegemonia.
Simultaneamente, intensifica-se o deslocamento do centro dinâmico a partir do Ocidente em direção ao Oriente, reorganizando o sistema de acumulação em nível policêntrico que se afasta dos polos Norte e Sul.
A China se situa no eixo desse movimento, uma vez que as disrupções observadas durante o combate à covid-19 catalisaram o desenvolvimento socioeconômico e tecnológico do país, abrindo um novo caminho para o crescimento em harmonia com a natureza e viabilizando práticas sustentáveis.
Ao protagonizar essa transição, a China dá continuidade ao processo iniciado há mais de 40 anos, combinando objetivos às vezes conflitantes de igualdade de meios confortáveis de sobrevivência e proteção ambiental. Assim, entram em cena as propostas de prosperidade comum e de revitalização rural, de modo a sustentar a conquista de eliminação da pobreza extrema alcançada em pleno primeiro ano da pandemia. Ao mesmo tempo, tem-se o objetivo de ampliar a classe média funcional, habitada em
cidades inteligentes (smart cities), tornando-se o mercado consumidor de último recurso (last consumer resort).
No entanto, tal proposta não pertence apenas ao povo chinês, mas também ao chamado “Terceiro Mundo”, que se integra através de projetos em energias renováveis e de inovação tecnológica via financiamento sustentável (finanças verdes). Tudo isso para viabilizar o rearranjo das cadeias produtivas globais e do sistema periférico, lançando luz a uma agenda de desenvolvimento guiada por interesses soberanos e multilaterais capaz de garantir um equilíbrio dinâmico entre oferta e demanda de bens, serviços e investimentos produtivos via novas rotas de conexão entre o mundo.
Caso essa proposta prevaleça, nenhuma grande potência exercerá sozinha a hegemonia. Isso cria a inédita possibilidade de mudança substancial na ordem mundial, com um destino comum de distribuição de riqueza e igualdade de renda e um futuro compartilhado de combate aos desastres ambientais e às mudanças climáticas. É um benefício, portanto, a toda a humanidade.
[1] BENJAMIN, C. Wuhan no isolamento do coronavírus. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto Editora, 2020.
[2] Declarações feitas pelo presidente chinês Xi Jinping durante a 12ª reunião da Comissão Central do Aprofundamento Integral da Reforma da China, em março de 2020.
[3] PENELUPPI, J. R. Jr.; BULLA, O. (2022). Socialismo de mercado: Eficácia da resposta da China à pandemia da Covid-19. Revista De Ciências Humanas, 1(22).
[4] https://covid19.who.int/ : acesso em abr. 2023.
[5] FUKUYAMA, F. The End of History? The National Interest, No. 16 (Summer, 1989), pp. 3-18. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24027184 Acesso em abr. 2023.
(*) Olívia Bulla é doutoranda na Universidade Federal do ABC (UFABC), no Programa de Pós-Graduação em Economia Política Mundial. Observatório de Política Externa Brasileira (OPEB), núcleo China.