Como Israel e EUA fabricaram falsa crise com Irã que pode resultar em guerra generalizada
Tão temida guerra no Golfo Pérsico parece iminente, e tudo se baseia em uma fachada feita com objetivo de minar negociações nucleares com Teerã
Após anos de conversações, sanções e ameaças, é possível que tenhamos visto o início da tão temida guerra no Golfo Pérsico entre Israel, apoiado pelos Estados Unidos, e o Irã.
A ameaça certamente nunca foi tão grande. Israel bombardeou instalações iranianas após a meia-noite de sexta-feira (13/06). Até o momento, espera-se uma resposta iraniana, mas ela ainda não ocorreu. Falando sobre o ataque, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, disse que o bombardeio ainda não havia terminado, claramente interpretando isso como uma tentativa de impossibilitar que os Estados Unidos continuem a diplomacia com o Irã.
Na quinta-feira (12/06), o Conselho de Governadores da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA) aprovou uma resolução censurando o Irã pelo não cumprimento de suas obrigações com o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (NPT) e outros acordos, e declarou que as violações eram tais que o Conselho de Segurança das Nações Unidas poderia responder.
Isso significa que as sanções internacionais (em oposição àquelas impostas apenas pelos Estados Unidos, que têm grande impacto) podem retornar em breve, prejudicando ainda mais uma economia iraniana já devastada e desestabilizando potencialmente o governo iraniano.
Em vez de esperar por uma possível ação internacional, Israel lançou seu ataque menos de 24 horas após a votação da IAEA, usando a censura como pretexto.
Já estava claro há algum tempo que essa decisão estava chegando, principalmente após um relatório da IAEA de 31 de maio expondo inúmeras violações iranianas de suas obrigações, bem como uma grande atenção sobre um significativo aumento no estoque de urânio enriquecido do Irã para mais de 60%, um pequeno passo para o grau de armamento. Em preparação para a votação da IAEA, os Estados Unidos evacuaram os funcionários não essenciais e as famílias dos trabalhadores de suas embaixadas nos países vizinhos, principalmente no Iraque, Kuwait e Bahrein. Os EUA estavam claramente cientes de que um ataque israelense era iminente. É praticamente certo que Israel não faria isso sem a sinalização positiva de Washington, independentemente do que as autoridades do governo Trump possam dizer.
Israel, com sua hipocrisia habitual, criticou Teerã no início do dia por minar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Israel não é signatário do NTP, mas tem seu próprio programa nuclear não declarado e não inspecionado, o único no Oriente Médio.
Em termos mais substanciais, Israel havia preparado um plano de ataque contra o Irã, inicialmente baseado na suposição de que agiria sem o apoio dos EUA. No momento em que escrevo, parece que foi isso que aconteceu. Mas é provável que Israel tente levar os EUA para a luta se ela perdurar.
Na segunda-feira (09/06), surgiram relatos de que o presidente dos EUA, Donald Trump, havia dito ao primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, que não atacasse o Irã enquanto houvesse diálogos para uma solução diplomática. Por enquanto, essas negociações estavam programadas para continuar no domingo (15/06) em Muskat. Resta saber se elas ainda ocorrerão após a ação de Israel.
Todavia, Trump sinalizou que não está mais otimista quanto à possibilidade de um acordo com o Irã. Para Washington, isso equivale essencialmente a apontar uma arma engatilhada para o Irã e dizer a ele que é melhor aceitar um acordo ou o tiro. Israel (como o jornalista israelense Amir Tibon definiu) pode simplesmente disparar. Agora que isso aconteceu, precisamos ver se esse foi um tiro de advertência ou o início de uma guerra. Netanyahu está claramente trabalhando para a segunda opção, mas ainda há a possibilidade de impedi-lo.
A posição do Irã em relação à IAEA
No passado, o Irã respondeu a meras críticas da IAEA aumentando sua atividade nuclear. Essa decisão de censura, a primeira em duas décadas, já provocou uma forte reação. O Irã classificou a decisão como política, mas pouco disse sobre as acusações específicas. Isso não é acidental.
Os detalhes das acusações que a IAEA fez contra o Irã são precisos, mas precisam ser entendidos em seu contexto.
A IAEA está preocupada principalmente com a falta de cooperação do Irã de modo geral, mas o Irã tem usado as condições da IAEA como sua única maneira de responder às pressões dos EUA desde a revogação do Plano de Ação Integral Conjunto (JCPOA em inglês, coloquialmente chamado de “acordo nuclear com o Irã”) que Barack Obama concluiu em 2015. Como Donald Trump revogou o acordo de forma unilateral e indesculpável em 2018, reativando muitas das sanções que haviam sido aliviadas, o Irã não viu outra maneira de pressionar os EUA a voltar ao acordo.
Essa foi uma decisão que, embora certamente defensável, foi repleta de consequências. Para os países europeus que, juntamente com os Estados Unidos, levaram a resolução de censura à IAEA, isso significou que um acordo internacional que muitos consideram o mais importante que temos, o NTP, estava sendo usado como moeda de troca.
O Reino Unido, França e Alemanha (coletivamente chamados de E3) não estão ansiosos por uma guerra no Golfo, mas há anos pressionam por uma postura mais confrontacional em relação às violações nucleares do Irã. Eles também não estão otimistas quanto às intenções do Irã ou quanto ao uso das obrigações nucleares como ferramenta de negociação. Eles também estão bastante insatisfeitos com o relacionamento próximo de Teerã com a Rússia, uma ferida inflamada para o E3 desde a invasão da Ucrânia por Moscou há três anos.
Portanto, a decisão é política, mas isso não significa que as acusações da IAEA sejam falsas. As denúncias da IAEA sobre a impossibilidade de verificar a conformidade do Irã com suas obrigações são reais. O E3, no entanto, provavelmente não queria que Israel resolvesse o problema com suas próprias mãos. Na verdade, eles provavelmente esperavam que o voto de censura evitasse um ataque israelense, pelo menos por tempo suficiente para que os Estados Unidos se resolvessem com o Irã de forma mais positiva em Muskat. Essas esperanças foram frustradas com o ataque de Israel.
O ponto principal no qual a IAEA está interessada é a descoberta de vestígios de urânio em locais que o Irã não havia divulgado como locais nucleares. O Irã não explicou adequadamente essa descoberta, e muitos acreditam que ela seja a prova de um programa secreto de armas nucleares iraniano de 2002. Embora haja uma crença generalizada de que o Irã estava realmente buscando armas nucleares naquela época, os Estados Unidos verificaram, e continuam a verificar, que o Irã abandonou esses esforços em 2003 e nunca mais os retomou.

Benjamin Netanyahu e Donald Trump
White House / D.Myles Culle
Ainda assim, o Irã nunca admitiu ter buscado uma arma nuclear e consideraria problemático fazê-lo, dada a insistência de ambos os seus líderes supremos históricos — atualmente o aiatolá Ali Khamenei e anteriormente o aiatolá Ruhollah Khomeini — de que o Islã proíbe tais armas.
O Irã respondeu à votação de censura declarando que abriria uma terceira usina de enriquecimento nuclear, que aceleraria o enriquecimento de urânio e que estava preparado para atacar Israel e as bases norte-americanas na região se fosse atacado. Agora veremos essa última declaração ser posta à prova.
Uma crise fabricada
Há uma maneira simples de sair desse atoleiro, que é os Estados Unidos cederem em sua exigência totalmente desnecessária de que o Irã concorde em não se utilizar e desmantelar sua infraestrutura de enriquecimento de urânio. Essa é uma condição na qual Israel, seus apoiadores e seus colegas de regime apoiadores do belicismo em Washington têm insistido exatamente porque sabem que é inaceitável para o Irã.
O Irã não está disposto a permitir que suas capacidades nucleares civis sejam controladas por forças externas cujos interesses políticos, mesmo que sejam compatíveis com os do Irã hoje, podem não ser amanhã. Provavelmente, o que ainda é mais importante para o Irã é o que considera ser seu direito de enriquecer seu próprio urânio.
O NPT não concede explicitamente esse direito, mas também não impõe nenhuma condição para o enriquecimento de baixo nível. Entretanto, ele garante a todos os signatários o direito de desenvolver, pesquisar, produzir e usar energia nuclear para fins pacíficos, o que o Irã, razoavelmente, interpreta como o direito de enriquecer urânio. Portanto, torna-se uma questão de orgulho nacional para o Irã, e isso é algo que une até mesmo as oposições do regime atual.
Teerã tem sido claro sobre sua disposição de se submeter a inspeções rigorosas da IAEA para garantir que seu enriquecimento seja apenas para fins civis se as sanções forem suspensas. Sua conformidade com o JCPOA de 2015 a 2018, mesmo por um tempo depois que Trump rompeu o acordo, é uma evidência de que o Irã está falando sério.
Mesmo que se acredite que o Irã possa desenvolver urânio para armas clandestinamente (o que é muito difícil, pois esse material radioativo é detectável a grandes distâncias), é muito mais fácil fazer isso se não houver inspeções da IAEA do que se houver. Simplesmente não faz sentido que os EUA coloquem em risco esse acordo por causa dessa questão, a menos que eles realmente não queiram um acordo, o que certamente é o caso dos belicistas do Irã. Trump não é suficientemente versado nessas questões para entender isso.
De fato, toda esta questão foi fabricada. A própria agência de inteligência dos EUA tem afirmado consistentemente, desde 2007, que o Irã não tem buscado ativamente uma arma nuclear desde 2003. A única razão pela qual suas atividades nucleares avançaram nos últimos anos foi porque os Estados Unidos romperam o JCPOA e, desde então, o Irã tem usado os avanços nucleares como uma moeda de troca para fazer com que os EUA concordem com um novo acordo.
Essa não é uma boa estratégia para o Irã. Ela dá aos EUA um motivo para tentar chegar a um acordo, como Trump vem fazendo (e como Joe Biden fatalmente se recusou a fazer), mas também dá aos belicistas israelenses e norte-americanos uma ponto para argumentar a favor do ataque ao Irã, ao mesmo tempo em que conseguem o apoio de seus colegas europeus.
Também não está claro o que o Irã estava realmente fazendo há quase um quarto de século. Lembre-se de que, naquela época, os Estados Unidos estavam se preparando e embarcando em sua invasão espontânea ao Iraque, com base em acusações forjadas. Mesmo antes da invasão, muitos neoconservadores estavam ecoando o argumento de Netanyahu de que o Irã era o próximo e mais importante alvo.
Com duas potências nucleares batendo no peito como gorilas, é razoável que o Irã tenha sentido a necessidade de uma dissuasão nuclear, e definitivamente havia forças no Irã defendendo esse argumento. Não se sabe se elas tinham força suficiente para fazer isso acontecer, e o Irã, mesmo hoje, prefere deixar essa questão em aberto. Muitos, inclusive eu, acreditam que o Irã estava buscando a capacidade de fuga nuclear (ou seja, urânio suficiente para armas, tecnologia de mísseis e conhecimento para criar rapidamente uma arma nuclear) como um impedimento a um ataque americano, e não uma arma de ameaça real.
Mas tudo isso é uma discussão sobre uma ameaça imaginária. Considere as palavras de Abbas Araghchi, ministro das Relações Exteriores do Irã, que twittou na quarta-feira (11/06): “o presidente Trump entrou no cargo dizendo que o Irã não deveria ter armas nucleares. Na verdade, isso está de acordo com nossa própria doutrina e pode se tornar a base principal para um acordo”.
Com o ataque de Israel, estamos diante de uma guerra que pode causar grandes estragos no Golfo Pérsico, repercutir em todo o Oriente Médio, envolver as maiores potências militares do mundo, colocar a economia global em queda livre e, potencialmente, desencadear a Terceira Guerra Mundial. Mesmo na melhor das hipóteses, qualquer confronto militar contínuo entre o Irã e Israel significará uma grande perda de vidas, um choque para a economia global já em crise, pelo menos por um tempo, e aumentará as consideráveis tensões regionais.
Todos esses riscos estão sendo assumidos por causa de uma ameaça que todos sabem que não existe, apesar de suas declarações bombásticas.
Na quinta-feira, antes do ataque de Israel, Muskat confirmou que as conversações seriam realizadas neste domingo. Essas conversas poderiam ter sido uma oportunidade de se afastar da guerra. Agora parece improvável que elas aconteçam. Novamente, cabe aos Estados Unidos encontrar uma saída para uma possível guerra regional.
Mas o risco de guerra não deveria existir de forma alguma. Não há, de fato, nada pelo que lutar. Um acordo nuclear pode ser facilmente alcançado se o Irã permitir que a IAEA tenha o mesmo acesso que teve de 2015 a 2019 (o que está disposto a fazer em troca de alívio das sanções), e os EUA abandonarem sua insistência ridícula no enriquecimento zero. A partir daí, os detalhes de um acordo podem ser elaborados em questão de dias ou, no máximo, semanas.
Isso não significa, de forma alguma, que todos os problemas seriam resolvidos. O Irã e Israel ainda se enfrentarão em muitas questões, sendo o genocídio em Gaza continuando a ser um ponto crítico. Ainda haverá representantes do Irã, Arábia Saudita, Israel, Emirados Árabes Unidos, Turquia e de outros países em conflito na região. Haverá também sanções contra o Irã que não estão relacionadas à questão nuclear.
Portanto, haverá muitos motivos para se brigar. Mas nada disso ameaça uma guerra regional, muito menos uma guerra mundial, apesar dessas questões genuínas de competição, contenção e discordância ideológica e nacional. Essa foi a maior virtude do JCPOA que também estaria em um novo acordo.
Todos nós deveríamos estar pedindo aos nossos líderes que não arrisquem uma grande conflagração por causa de uma questão fictícia. Netanyahu está ameaçando que esse ataque incluirá o assassinato de cientistas iranianos e outras personalidades e continuará o ataque por dias. Estamos agora à beira do abismo e precisamos nos afastar dele imediatamente.
(*) Mitchell Plitnick é presidente da “ReThinking Foreign Policy”. É coautor de Except for Palestine: The Limits of Progressive Politics e mantém o boletim informativo Cutting Through” no Substack. Os cargos anteriores de Mitchell incluem vice-presidente da “Foundation for Middle East Peace”, diretor do escritório norte-americano da B’Tselem e codiretor da “Jewish Voice for Peace”.
(*) Tradução: Gabriel Gruber