Após registrar o autoflagelo dos trabalhadores eleitores de Trump, de ver de perto o pão e circo democrata no showmício de Kamala Harris, de cobrir a reação das pessoas nas ruas da Filadélfia após a vitória de Donald Trump, fui atrás da esquerda nos Estados Unidos.
Segui a boa pista de um amigo professor da Universidade da Pensilvânia que me chamou para uma reunião do Partido para o Socialismo e a Libertação (PSL).
Ali, no Philly Liberation Center, um sobrado de três andares e em meio aos cartazes de Frida Kahlo, Fidel Castro, Ângela Davis, Malcom X, um grupo de jovens comentava a vitória de Trump. A moral estava baixa e até o começo da palestra, online e a primeira com as lideranças socialistas após o resultado eleitoral, cerca de 40 pessoas chegaram e se acomodaram.
Cada um que entrava era estimulado a se apresentar e participar de uma dinâmica muito bem conduzida e voltada ao compartilhamento de medos e ansiedades. Havia mais jovens do que velhos, mais brancos do que negros, (aparentemente) mais norte-americanos do que imigrantes, uma boa equivalência entre mulheres e homens e entre trabalhadores e estudantes.
Neste grupo, alguns se identificaram como comunistas, outros como socialistas, e um consenso se generalizou: o presente momento, por mais duro que seja, abre uma oportunidade efetiva de mobilização das pessoas.
Em meio às falas, não faltou menção à possível escalada do racismo dos supremacistas e da polícia; ao pânico da deportação pelos imigrantes não documentados; à farra dos bilionários e os riscos de uma caça às bruxas e de restrição a acessos a direitos.
Impossível, ao acompanhar a dinâmica inclusiva e colaborativa do PSL, não lembrar das reuniões da esquerda no Brasil de 2018 após a vitória de Jair Bolsonaro. Tempos de uma imensa necessidade de sociabilidade, de comunhão das ansiedades e, sobretudo, de presença, tão bem sintetizada no mote: “ninguém solta a mão de ninguém”.
Ciente desse movimento, nas redes sociais, o PSL convocou: “não chore, organize-se! Muitas pessoas se sentem incertas sobre o futuro com a reeleição de Donald Trump, mas o que temos certeza é do nosso comprometimento em continuar a luta”.
E continuar a luta é compreender que “as pessoas vão precisar de ajuda” e caberá ao partido estimular a criação dessa rede de proteção. Afinal, Trump não está brincando. Para questões relacionadas às fronteiras, ele prevê a entrada de Tom Homan, conhecido por “czar da fronteira’, um ferrenho defensor da “tolerância zero” aos imigrantes, que esteve à frente do Serviço de Imigração e Alfândega quando Trump promoveu a inominável separação entre pais e filhos na fronteira.
Outro linha-dura na questão da imigração é Stephen Miller, o futuro vice-chefe de gabinete para políticas, entre as quais constará o tal plano de deportações em massa. Foi esta, pelo menos, a acolhida que presenciei num pequeno universo da esquerda dos Estados Unidos. Uma política feita pelas pessoas comuns, de peito aberto e mãos estendidas.
Com 20 anos de existência, após romper com o Workers World Party (WWP), o PSL é um exemplo vivo de uma esquerda capaz de adentrar os muros do Império. Com orientação marxista-leninista e uma contundente defesa do anti-imperialismo e do socialismo, o PSL ganhou projeção na onda dos protestos universitários em prol do cessar-fogo em Gaza.
Trata-se de um partido pequeno, sem qualquer chance de vitória, que como outros de esquerda, vem apresentando candidaturas próprias. Neste ano, a candidata é Claudia De La Cruz. Nascida no Bronx em Nova York, ela é negra e filha de imigrantes da República Dominicana.
Formada em psicologia forense pela John Jay College of Criminal Justice, tem dois mestrados, um em Assistência Social, na Columbia University, e outro em Teologia, pela Union Theological Seminary. Ainda jovem, De La Cruz fundou a Urban Butterflies (DUB), organização voltada à capacitação de mulheres e chegou a ser pastora da igreja protestante Santo Romero de Las Américas.
Na City University de New York, deu aulas sobre a história dos latinos nos Estados Unidos. Suas propostas de campanha?
O corte de 90% no orçamento militar dos Estados Unidos. A suspensão da ajuda financeira e militar dos EUA para Israel. O confisco de propriedades das 100 maiores empresas norte-americanas. O aumento da tributação sobre grandes fortunas.
Em termos de política doméstica? Claudia defende as reparações históricas para os negros do país. A assistência médica universal. A anistia das dívidas dos empréstimos estudantis. O reconhecimento pleno da soberania dos nativos americanos. A expansão do transporte público.
É essa agenda de direitos, humana e anti-imperialista, que vai se tornando realidade e sendo abraçada por associações e movimentos, partidos e universidades, candidaturas independentes e organizações da sociedade civil.
De La Cruz apoiou, em algumas regiões, a candidatura de Jill Stein do Partido Verde, que, por sua vez, apoiou a liderança do PSL em outros estados. Da mesma forma, a candidatura independente de Cornel West, ex-professor da Harvard e professor emérito de Princeton, apoiou De La Cruz.
Esse circuito de apoios atua no impulsionamento da pauta de direitos, civilizatória e anti-imperialista, que vai sendo abraçada por associações e movimentos, partidos e universidades, candidaturas independentes e organizações da sociedade civil país afora.
Como Trump venceu
Na live intitulada “Why the democrats failed. How Trump Won. What is to be done? (Por que os democratas falharam. Como Trump venceu. O que devemos fazer?, em tradução livre), de La Cruz nos ajuda a entender o engessamento democrata e o sentimento, muito perceptível nas ruas, de que não importa quem esteja no governo, as coisas não irão mudar.
A primeira crítica feita por ele aos democratas diz respeito à tentativa do partido, após o resultado eleitoral, de culpabilizar os segmentos que vinham sendo apontados como decisivos, em particular, os homens negros e latinos.
“Eles dizem que temos de culpar os homens negros, os homens latinos, os imigrantes. Que temos que julgar os que não saíram para votar, mas temos de intervir sempre que ouvirmos essa história para dizer que não foram eles, mas sim a falta de coragem do Partido Democrata que nos trouxe até aqui”, disse.
“Foi a incapacidade do Partido Democrata de aceitar a sua responsabilidade de mudar o rumo [do país] que nos trouxe até aqui. Trump venceu porque os democratas estão medíocres. Trump venceu porque os democratas não são uma oposição a ele ou a qualquer um que seja da classe dominante. Trump venceu porque os democratas falharam e traíram os trabalhadores”.
Somadas as ações das sete maiores Big Techs norte-americanas, com dados de julho deste ano, o valor total atinge US$ 15,4 trilhões. O PIB dos Estados Unidos, em 2023, bateu US$ 27,36 trilhões. Ou seja, sete empresas – Apple, Microsoft, Nvidia, Alphabet, Amazon, Meta e Tesla – detém mais da metade do que é produzido no país.
Esse é o nível de concentração de uma aristocracia financeira e tecnológica que tem em Elon Musk um de seus expoentes. Com dois pés dentro do governo Trump, Musk comanda todos os ciclos produtivos de uma cadeia tecnológica que engloba a produção aeroespacial, de satélites e é capaz de chegar em cada celular através das redes sociais que comanda. Sua missão no governo, segundo o presidente eleito, será a de enxugar o Estado, com demissões e cortes, como ele fez ao demitir 80% dos trabalhadores do Twitter.
O fato é que enquanto os bilionários avançam sobre a política, a população dela se afasta. Nas palavras de De La Cruz: “o nosso povo não é politicamente apático, tampouco é culpado por não querer se envolver com um sistema político que não se envolve com ele. E que não entrega o que promete”.
Em sua avaliação, os democratas são “um partido com poder econômico e político para fazer algo, mas opta por não fazê-lo”. Sobre Trump, ela foi direta: trata-se de “um personagem produzido pelo sistema capitalista”, um “sintoma de uma doença real (o capitalismo) que devemos trabalhar para destruir”.
64 cidades em 13 meses
Ao relatar o que viu e ouviu nos 13 meses em que passou por 64 cidades norte-americanas – “não visitamos apenas os estados pêndulos” – de La Cruz conta ter ouvido de uma das comunidades “a garantia de que eles vão continuar a fazer este trabalho [de resistência], independentemente de quem seja o novo inquilino da Casa Branca”.
“Essa não é a atitude dos liberais ou dos democratas, mas da classe trabalhadora. Ouvimos essas pessoas nas suas comunidades afirmarem que estão se organizando em torno de salários dignos. Trabalhadores das redes de fast food, da Amazon, de restaurantes que denunciaram o congelamento do salário-mínimo, que em certas regiões não aumenta desde 2009”, complementou.
Vale destacar que, diferentemente do Brasil, cada um dos 50 estados da República norte-americana possuiu autonomia, o que significa ter suas próprias leis e um valor específico para o salário-mínimo. Ela também contou sobre o cenário desolador de cidades abandonadas pelo poder público, ou melhor, de “comunidades abandonadas tanto pelos republicanos quanto pelos democratas”, e que se transformaram em “cidades fantasmas, onde as pessoas continuam tentando ganhar a vida”.
Ela mencionou também a violência e o surgimento de cidades policiais em todo o país. “Fomos nas comunidades que estavam se organizando contra a brutalidade policial e o encarceramento em massa”, afirmou, ao registrar o aumento de mortes pela polícia contra os civis desarmados.
De La Cruz, por fim, mencionou a responsabilidade atual “de se acabar com a máquina de guerra dos EUA”. Em sua avaliação, “é inconcebível que os Estados Unidos da América tenham um trilhão de dólares alocados para os militares, quando o país vive uma destruição da educação, da assistência à saúde, sem que as pessoas consigam pagar ou tenham acesso às creches”.
“Nosso pessoal está acordado. Eles sentem [essa realidade] todos os dias e estão esperando por uma alternativa, uma orientação, uma ferramenta”, afirmou ao destacar que essa situação não vai parar com Donald Trump, mas pode se agravar com ele.
Em sua avaliação, a questão agora é: “ficamos parados e o observamos a consolidação dessa agenda? Ficamos parados e o observamos desencadear todos os tipos de ataques a países e a comunidades historicamente marginalizadas?”.
Divisão entre a minoria rica e a maioria da sociedade
Para ela – e tantos analistas que se manifestaram ao longo da semana neste sentido – “a verdadeira divisão da sociedade norte-americana não é entre democratas e republicanos. Na verdade, há um partido com dois nomes, duas facções do governo”.
“A divisão não é Trump ou Harris, que contavam com os mesmos doadores. E a minha avó me ensinou que quem paga as contas, pode escolher e decidir qual será a agenda”, ironizou.
“A verdadeira divisão é a minoria capitalista mais rica e a maioria da sociedade. Uma minoria que impõe sua hegemonia e violência contra nós”.
E ela arrematou: “não há nada que tenhamos recebido como benevolência da classe dominante. Sempre tivemos que lutar e se há algo em que o Partido Democrata tem sido muito eficaz é em intervir na nossa capacidade de construir o poder popular. Eles têm organização política e nos diz que não precisamos disso”.
“Eles têm o Congresso, têm o Senado, têm o FBI, a CIA, o Pentágono, a filantropia. Eles estão organizados. A história nos ensina que somente as pessoas em luta organizada pode salvar outras pessoas. A classe dominante nunca fará isso por nós”.
“Trump está divulgando a sua agenda, que será uma agenda para a classe dominante. Precisamos estar prontos para apresentar a agenda da classe trabalhadora e o que estamos dispostos a defender, a proteger e a lutar”.