Em um ano e meio, o governo produziu vitórias inquestionáveis dentro e fora do Congresso. A partir da chamada PEC da Transição, antes mesmo da posse do presidente Lula, o governo retomou o vigor dos programas sociais que haviam sido reduzidos, como Farmácia Popular, Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, refez os orçamentos da educação e da saúde, aprovou o Pé-de-Meia e a reforma do Novo Ensino Médio, lançou uma nova política industrial, iniciou o projeto de transição ecológica, aprovou a reforma tributária e impediu que a agenda de costumes imperasse.
Apesar dessas vitórias, algumas derrotas em votações no Senado e na Câmara dos Deputados, as dificuldades de vencer o lobby de defensores de privilégios nas discussões da reforma tributária, os embates cada vez mais difíceis com o comando das duas casas legislativas, tudo isso tem revelado a correlação de forças adversa para a centro-esquerda, os limites e as falhas de articulação política governista e a musculatura desproporcional da direita e da extrema direita no Congresso. Com o poder das bancadas conservadoras, do rentismo e dos privilegiados históricos, com frequência vemos a retomada da falácia do semipresidencialismo, ou o que venho chamando de parlamentarismo envergonhado.
Na narrativa que alguns tentam fazer valer, usam-se as dificuldades e os placares de derrotas para o governo para a difusão de algumas teses enganosas: a ideia de disfuncionalidade entre os Poderes se junta a um suposto descolamento entre a agenda do governo e os interesses do país, ao tamanho pequeno da base governista na Câmara (hoje em torno de 140 deputados) e à narrativa de que o governo é ruim, faz tudo errado e, portanto, cabe ao Congresso corrigir seus rumos. É a tempestade perfeita usada pela turma de sempre que deseja impor o parlamentarismo envergonhado para impedir o avanço de uma agenda transformadora e sustentar privilégios históricos.
A soma de todos esses problemas e suas consequências é fruto de algo maior, que vai muito além da força do presidente da Câmara dos Deputados, que hoje galvaniza os interesses diversos dos deputados federais e a apropriação do Orçamento Geral da União, via emendas parlamentares impositivas. Num ano em que o Congresso passará pela sucessão do deputado Arthur Lira (PP-AL) na presidência da Câmara – uma disputa que, quando mal conduzida, costuma deixar sequelas sobre a base de apoio ao Executivo – é fundamental lembrar que, embora seja importante o nome que irá sucedê-lo, há algo ainda mais relevante: o que o governo deseja para 2025? Qual agenda quer de fato debater e aprovar para os dois últimos anos deste terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
Prioridades em 2025
É de pouca serventia saber quem será o presidente se não houver uma definição mais clara, precisa e profunda da agenda do governo para os próximos dois anos. Listo algumas possibilidades.
A primeira delas é conclusão de uma reforma tributária que avance também em relação ao Imposto de Renda e à taxação da riqueza, do patrimônio, dos lucros e dividendos, medidas fundamentais para inverter a nossa concentradora estrutura de impostos e promover a desconcentração de renda, vital para garantir a demanda interna.
Outra prioridade a ser definida pelo governo será a implementação do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), do programa Nova Indústria Brasil (NIB) e da transição ecológica. Resposta ao processo de desindustrialização que o país vem enfrentando nas últimas décadas e ao baixo desenvolvimento de produtos com complexidade tecnológica, o NIB define metas específicas abrangendo os setores de infraestrutura, moradia e mobilidade; agroindústria; complexo industrial de saúde; transformação digital; bioeconomia e transição energética; e tecnologia de defesa. Até 2026, o NIB contará com R$ 300 bilhões, além de medidas de estímulo para setores estratégicos como prioridade para produtos nacionais em compras públicas.
Estará no foco do governo e de sua relação com a sociedade e o Congresso o fortalecimento da indústria brasileira e o estímulo à inovação, para que ela se torne mais competitiva e gere empregos mais qualificados? Tenho ressaltado que, para tal avanço, é fundamental uma efetiva articulação de agentes do governo com a indústria brasileira e parte do agronegócio.
Já o PAC elegeu como prioridades as cidades, onde está o Minha Casa Minha Vida, o setor de transição e segurança energética e o de transporte, com recursos da ordem de R$ 601 bilhões, R$ 596 bilhões e R$ 369 bilhões, respectivamente.
O tripé se completa com o Plano de Transformação Ecológica, que pode gerar de 7,5 milhões a 10 milhões de empregos em todos os setores – com enfoque especial nos segmentos de bioeconomia, agricultura e infraestrutura – e oportunidades de geração de renda. Há uma longa estrada a ser pavimentada, envolvendo investimentos robustos anuais, sobretudo em infraestrutura, para promover adaptações, produzir energia, aprimorar a industrialização verde e a mobilidade. Uma mobilização de investimentos e criação de infraestruturas sustentáveis via investimentos públicos de tal ordem que não se faz isso sem uma grande pactuação nacional – muito menos sem uma atuação estratégica da Petrobras e outras empresas nacionais de ponta na pesquisa e no desenvolvimento.
Será este o tripé de prioridades do governo em 2025? Será o crescimento econômico, para o qual é fundamental perseguir a queda dos juros? Afinal, o pagamento do serviço da dívida é hoje mortal para o Brasil. No ano passado foram cerca de R$ 800 bilhões. Com os juros menores e sem alimentar a ciranda dos rentistas, o país teria mais recursos para investimento. É o óbvio que precisa ser lembrado: quando o país crescer mais que a inflação, a dívida pública estabilizará e começará a cair.
Será preciso definir se inclui na prioridade para o ciclo 2025-2026 a capitalização dos bancos públicos, assim como o novo papel da Petrobras, que devem estar a serviço do desenvolvimento nacional. O desenvolvimento sustentável não chegará a nós via austeridade fiscal ou ancorado na agregação de valor da agricultura e da mineração, associada com a negação do papel do Estado e das políticas industriais. Esse pressuposto equivocado, vigente entre muitos, tem nos levado a um crescimento econômico que beneficia as elites e preserva a pobreza generalizada, com perda da soberania nacional.
Ou um acordo abrangente e estratégico com a China, incluindo um acordo do Mercosul com os chineses? Como sabemos, os Estados Unidos, apoiados no dólar, no poderio militar e no controle da informação e da cultura, trabalham para impedir as mudanças geopolíticas em curso. Essas mudanças são objetivas e irreversíveis, fruto da emergência de países como China, Índia, Rússia, Irã, Turquia, Indonésia, Arábia Saudita e Brasil.
É a política
Será essencial definir as reais prioridades, ter um comando político subordinado diretamente ao presidente, integrar as diversas áreas do governo à priorização das iniciativas, e mobilizar a sociedade – com interlocução com o empresariado, os trabalhadores, a sociedade civil, as classes médias e os demais segmentos sociais – de modo a minimizar os danos provocados pela ausência de uma maioria parlamentar. Do contrário, o governo ficará sujeito aos humores de um Parlamento conservador na pauta de costumes, liberal nas questões econômicas e sem qualquer escrúpulo em troca de voto por interesse político.
“De que adianta ministério para deputado? Na maioria das vezes, absolutamente nada – pois geralmente quem se beneficia do ministério é apenas o ministro”, escreveu recentemente um ex-presidente da Câmara dos Deputados, ao descrever que as bases de cada deputado são mais bem contempladas hoje com emendas parlamentares. O diagnóstico é correto, mas a prescrição é malandra e falaciosa: a introdução do parlamentarismo, ou do chamado semipresidencialismo, como solução política para os impasses entre Executivo e Legislativo, e para uma suposta confluência entre a agenda do governo e a pauta do Congresso.
Essa solução é a preferida de dez entre dez representantes do conservadorismo moral, do liberalismo econômico, dos lobbies e dos privilégios. Como já escrevi em outra oportunidade, querer resolver uma questão política mudando o sistema de governo não passa de uma manobra para retirar do povo sua soberania para eleger o presidente da República, evitando assim governos presididos por programas e metas que contrariam a maioria conservadora do Parlamento.
É também uma forma de assegurar os benefícios indevidos a setores empresariais, como ficou evidente na primeira quinzena de junho, na devolução da Medida Provisória do PIS/Cofins. Devolver uma MP é coisa rara: da Constituição de 1988 para cá, uma MP foi devolvida, em média, a cada sete anos. A MP pretendia, no fundo, barrar ou limitar privilégios tributários instituídos no governo Bolsonaro: o setor de combustíveis foi desonerado em 2022, uma medida eleitoreira para reduzir os preços de gasolina e diesel em pleno período eleitoral. Por essa desoneração, as distribuidoras não pagaram PIS/Cofins, mas estavam se creditando indevidamente, ou seja, usam supostos créditos para pagar tributos do Imposto de Renda e Contribuição Social sobre Lucro Líquido, recolhimento tributário e outros. Isso daria um custo tributário da ordem de R$ 20 bilhões.
Mas, ora vejam, para os porta-vozes do lobby dos privilégios – como a desoneração de dezessete setores, um típico benefício tributário sem as devidas contrapartidas – o problema está na incapacidade do governo e sua desarticulação política.
Não há saída para o desenvolvimento sem a construção de um grande bloco social e um arco de alianças partidárias capazes de impulsionar um programa de reformas estruturais. Se há limites nos nossos partidos e na hegemonia da direita conservadora, convém mudar a forma de disputa no jogo eleitoral, político e cultural. Para tanto, é preciso uma agenda clara e capacidade de construção desse grande arco de apoio, além da contenção das soluções marotas em torno do parlamentarismo envergonhado. Os episódios que resultaram no freio às PECs das Praias e do Estupro mostraram a importância central da participação da sociedade civil, de modo a barrar o avanço da extrema direita e promover uma agenda progressista para o país.
Caso contrário, hipoteticamente pode-se até ter um presidente da Câmara saído diretamente do Palácio do Planalto – o que obviamente não ocorrerá e nem é desejável –, mas ainda assim não se produzirão milagres.
(*) José Dirceu foi ministro-chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula (2003-2005), presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e deputado federal por São Paulo.