Todos se lembram da multidão que tomou as ruas de Buenos Aires em dezembro de 2001, na pior crise econômica da história da Argentina, com o grito “que se vayan todos” (“que vá todo mundo embora”). A rebelião da classe média acabou provocando a fuga do então presidente Fernando de La Rúa, a bordo de um helicóptero, e a sucessão de quatro chefes de Estado em duas semanas.
Episódios semelhantes aconteceram no começo da década na Bolívia, no Equador e no Peru. Num clima de colapso econômico, muitos latino-americanos consideravam a democracia incapaz de satisfazer suas necessidades básicas, e acreditavam que uma restrição das liberdades era tolerável na medida em que proporcionasse bem-estar econômico.
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Após seis anos de crescimento ininterrupto, a América Latina foi afetada no ano passado pela crise econômica deflagrada nos Estados Unidos, registrando declínio de 1,8% no PIB (Produto Interno Bruto) conjunto, segundo a Cepal (órgão econômico das Nações Unidas na região). Pior do que em 2002, quando a contração foi de 0,8%. O desemprego crescente e a queda da renda provocaram o cancelamento do equivalente a cinco anos de políticas de redução da pobreza. A Cepal calcula que 9 milhões de pessoas caíram abaixo da linha de pobreza (menos de dois dólares por dia) e 5 milhões viraram indigentes (menos de um dólar por dia).
Mas, dessa vez, a crise econômica não provocou nenhuma turbulência no cenário político regional. Ao contrário, os governos surgiram mais fortes da recessão. É o caso do Brasil, onde o presidente Luiz Inácio Lula da Silva começa o último ano de seu segundo mandato com popularidade superior a 75%, e também do Chile, onde Michelle Bachelet se prepara para deixar o cargo com aprovação popular semelhante.
Na Bolívia e no Equador, dois países marcados pela instabilidade política, os presidentes Evo Morales e Rafael Correa foram reeleitos com folga – respectivamente em dezembro e abril passados. Apesar da queda de popularidade de Cristina Kirchner, mesmo a turbulenta Argentina está virando as costas para as rupturas institucionais. A crise econômica parece ter reforçado os governantes e consolidado as reivindicações democráticas na região.
O instituto chileno de estudos políticos Latinobarómetro, que examina, desde 1995, a opinião pública na região, confirma esta inversão de tendência. Sua pesquisa, realizada no final de 2009 em 18 países da região, revela uma América Latina preocupada com a situação econômica e a criminalidade, mas também mais tolerante, mais feliz e mais confiante no futuro.
Apesar da recessão, a proporção de latino-americanos que defende a democracia como sendo o melhor sistema político aumentou para 59%, dois pontos percentuais a mais que em 2008, um ano de crescimento econômico alto, e 11 pontos a mais que em 2002 (48%). Questionados sobre o que escolheriam se tivessem que optar entre democracia e desenvolvimento econômico, 44% dos latino-americanos responderam “democracia”, contra 29% em 2008.
O apoio à democracia é também revelado pela condenação ao golpe militar de Honduras, o primeiro registrado em 31 anos na região: 76% dos latino-americanos não apoiam a derrubada do presidente Manuel Zelaya em junho passado. “O golpe de Honduras é visto como um exemplo negativo, na medida em que faz lembrar como a via militar é aventureira”, explica Marta Lagos, diretora do Latinobarómetro, ao Opera Mundi.
Grau de confiança
Pela primeira vez desde a criação da pesquisa regional, o informe de 2009 revela que 45% dos latino-americanos confiam no governo, contra 25% em 2002. É a primeira vez que o grau de confiança alcança o mesmo nível que em relação às forças armadas, tradicionalmente vistas de maneira mais positiva que o governo. A instituição mais respeitada ainda é a Igreja, com 66% de confiança, seguida pelas emissoras de rádio (56%) e televisão (54%).
“As lembranças deixadas na região pelos regimes militares dos anos 60 e 80, e as guerras civis conseqüentes, corroboram a ideia de que os governos civis trabalham melhor”, analisa Alejandro Sanchez, especialista em questões militares no Conselho de Assuntos Hemisféricos, um centro de pesquisas sobre a América Latina com sede em Washington. Ele ressalta o fato de que a prosperidade econômica foi maior durante os mandatos dos presidentes civis. “Os latino-americanos preferem agora um líder civil, possivelmente autoritário, em vez de um governo militar que possa causar violações dos direitos humanos, censura à mídia etc”, acrescenta Sanchez.
“Nunca os latino-americanos sentiram tanto que viviam em democracia, com um grau de satisfação tão elevado. O apoio aos governos na região passou de 52 a 60%”, diz Marta Lagos. Ela explica esta mudança pelas medidas econômicas contracíclicas tomadas pelos governos, assim como as políticas sociais que aliviaram o impacto da crise sobre as camadas mais pobres da população.
Esta importante popularidade tem, porém, um lado negativo, chamado pela cientista política de “hiperpresidencialismo”. Ele se refere à tendência de governantes promoverem emendas constitucionais para se reeleger mais de uma vez, caso de Hugo Chávez na Venezuela e, provavelmente, de Álvaro Uribe na Colômbia.
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