Dois dias após a vitória que garantiu a volta da direita ao poder no Chile pela primeira vez desde o fim da ditadura (1973-1990), o presidente eleito do país, Sebastián Piñera, começou a trabalhar na formação de sua equipe de governo. A tarefa é considerada por analistas como o primeiro desafio político do empresário após a votação.
O próximo gabinete terá de representar o conceito de mudança, a principal bandeira do candidato direitista durante a campanha, ao mesmo tempo em que respeite o equilíbrio de forças dos partidos que o levaram ao poder – RN (Renovação Nacional) e UDI (União Democrática Independente) -, formados em grande parte por veteranos da política. Piñera também se comprometeu a respeitar a herança social da Concertação, coalizão de centro-esquerda derrotada pela primeira vez desde o retorno à democracia.
No entanto, esta posição é mal percebida por muitos lideres da direita. Segundo assessores do presidente eleito, o próximo governo será constituído por técnicos e profissionais bem preparados, de preferência jovens. É uma maneira de evitar a incorporação de nomes de peso durante a ditadura de Augusto Pinochet. A presença de um número significativo de mulheres é também vista como incontornável. Ficou difícil, após o mandato de Michelle Bachelet, ignorar a política de paridade de gêneros que ela introduziu.
EFE/Ian Salas
Piñera comemora a vitória no clube Colo-Colo
Outra grande dificuldade será conseguir montar um governo com uma capacidade de articulação importante no Congresso, onde a centro-esquerda conseguiu se manter com um poder importante. A Concertação ficou com o controle do Senado, com 19 cadeiras contra 16 para a direita. Na Câmara dos Deputados, a coalizão de Piñera conseguiu uma pequena maioria, com 58 cadeiras, frente às 54 da Concertação, às quais é preciso acrescentar os três deputados do Partido Comunista, que voltou a ter representação parlamentar após 36 anos.
Além disso, haverá três parlamentares do Partido Regionalista Independente (PRI), que costumam apoiar a direita, e dois independentes, completando as 120 cadeiras. “As negociações vão ficar bem mais árduas que antes, quando tinha dois blocos bem claros”, avalia Marta Lagos, que dirige em Santiago o instituto de pesquisa política Latinobarómetro.
União nacional
As margens de manobra dependem do talento do próximo ministro da Presidência, que é o principal vínculo entre o Executivo e o Legislativo. O nome mais cotado é o do economista Cristián Larroulet, destacado por sua capacidade técnica e negociadora. Os críticos ressaltam, porém, que ele participou do regime militar e seus valores são muito conservadores, o que pode provocar tensões dentro da ala mais liberal da direita.
O senador Pablo Longueira, da União Democrata Independente (UDI, extrema-direita), reconheceu que outra provável estratégia do presidente eleito seria formar um governo de união nacional, atraindo figuras da centro-esquerda que governaram nos últimos anos. “A primeira questão é saber se as pessoas vão permitir que se governe de maneira diferente, que o presidente possa convocar pessoas da Concertação se quiser, se eles aceitarem”, disse, em entrevista à radio chilena ADN.
A medida pode aparecer como um gesto de pacificação em relação aos eleitores tradicionais de centro-esquerda e esvazia o discurso de seus partidos. “Isso funcionou muito bem na França, quando Nicolas Sarkozy adotou um discurso baseado na mudança e na modernidade, além de oferecer ministérios a membros do Partido Socialista”, lembra o professor José Bengoa, da universidade Academia de Humanismo Cristão de Santiago. “Ele conseguiu debilitar permanentemente a esquerda com a nomeação de socialistas prestigiados, inclusive o chanceler Bernard Kouchner”, explica o cientista político.
Polêmicas
Segundo a diretora do instituto de pesquisas Latinobarómetro, Marta Lagos, a estratégia também tem objetivos técnicos. Ela lembra que a direita não tinha vencido a presidência do Chile pela via democrática desde 1958, e que, em consequência, tem um conhecimento muito fraco dos mecanismos do Estado. “É verdade que muitos militantes da direita participaram da ditadura de Pinochet, mas eles não tinham o poder. Os que governavam verdadeiramente o país eram os militares”, insiste.
Os temas polêmicos já estão surgindo, começando pela gestão da fortuna de Piñera, que ultrapassa 1 bilhão de dólares, segundo a revista Forbes. Até domingo, o conservador se recusava a esclarecer o futuro de suas participações na companhia aérea Lan Chile (na qual tem 26% das ações) e no time de futebol Colo Colo, o mais popular do país. Ele também rejeitou qualquer compromisso em relação à propriedade do canal Chilevisión.
Longueira declarou hoje que Piñera ia se desfazer destas participações – com a exceção de Colo Colo, que, segundo ele, não constitui nenhuma incompatibilidade – antes da posse. “Quando antes, melhor”, acrescentou o senador da UDI. Todas as ações das empresas controladas pelo bilionário aumentaram de maneira significativa após o anuncio da vitória.
Outro ponto de tensão será o da “pílula do dia seguinte”. Bachelet assinou ontem um decreto que permite a entrega nos centros de saúde pública do medicamento para menores de 14 anos, sem a presença dos pais. Muitos políticos da direita já se manifestaram contra, exigindo que o decreto seja revogado pelo futuro presidente.
Chávez e Lula
O presidente eleito também já acenou para uma mudança na política externa no país, criticando o venezuelano Hugo Chávez. Ele considerou que suas diferenças com o líder da revolução bolivariana, qualificadas de “profundas”, tinham a ver “com a forma como se concebe e se pratica a democracia, o modelo de desenvolvimento econômico e muitas coisas mais”, declarou hoje, durante entrevista coletiva para a imprensa estrangeira.
Piñera também sugeriu que uma vitória da direita era possível no Brasil este ano. Ele disse ser natural que um presidente não consiga eleger seu sucessor, mesmo se for muito popular – caso do Chile, onde a excelente avaliação de Michele Bachelet não foi suficiente para que Eduardo Frei, candidato de situação, vencesse o pleito.
“O Brasil terá que tomar seu próprio caminho e eu vou respeitar naturalmente a decisão democrática que a população do país tomar. Mas vou deixar muito claro que uma coisa é a popularidade de um presidente e outra coisa é a necessidade de mudanças que um país pode experimentar, como ficou claramente demonstrado no domingo”, acrescentou, dizendo ter um “apreço muito grande” pelos dois principais pré-candidatos no Brasil: a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), e o governador de São Paulo, José Serra (PSDB).
Vídeo mostra Piñera dançando em programa de tv dias antes de ser eleito:
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