No alto de uma das montanhas que rodeiam La Paz, no bairro pobre de Tembla de Rani, a casa de Lidia Flores não difere muito das demais: 18 metros quadrados, chão de terra batida, paredes de blocos vermelhos, telhado de zinco. Não tem banheiro e nem água encanada. “Temos de usar um banheiro público mais abaixo, do qual minha sogra toma conta. Leva meia hora a pé. Às cinco da manhã, levo as crianças para tomar banho antes de irem para a escola”, conta a chola lutadora.
O começo da manhã não é nada glorioso para quem à noite se transforma em Dina, “a rainha do ringue”, estrela ascendente no circuito da luta livre boliviana. Mas Lidia é menos a lutadora feroz retratada nos cartazes da companhia 100% Lucha de Titanes do que a dona-de-casa típica das periferias de La Paz.
Leia primeira parte:
Cholas brilham nos ringues bolivianos
De pele morena, estatura mediana, magra – até demais para o padrão estético local, o que a obriga a usar quatro anáguas debaixo da saia – Lidia fala pouco e baixo. Quase não sorri. Toda vez que responde a uma pergunta, olha para o marido, pedindo uma aprovação silenciosa.
Todos os dias, ela leva os quatro filhos para a escola em Sopocachi, bairro de classe média que fica no sopé do morro onde a família mora. Depois, segue para o centro, onde faz faxina em escritórios. Trabalha até as 19h ou 20h, quando chega em casa para ver os filhos já preparando o jantar. O marido, que vive entre bicos de pedreiro, eletricista, pintor e artesão, chega um pouco mais tarde. Os filhos, acostumados a se cuidarem sozinhos, cozinham bem, com os mais velhos olhando os mais novos. Eles têm 16, 13, 10 e 5 anos. Lídia tem 33 anos. Santos Senso, o marido, tem 32. Mas Dina, a rainha do ringue, nasceu há apenas cinco anos.
Lidia Flores – ou “Dina, a rainha dos ringues” – em frente à casa onde mora, na periferia de La Paz
“Em 2005, estreei contra um lutador, o Sangre Chicana. Logo que entrou, ele começou a me socar, agarrava minhas tranças, me jogava no chão… O público me apoiava e gritava 'Dina, reage, reage!'. Então comecei a reagir e fui pra cima dele. Deixei-o caído no chão. No final, todos me aplaudiram, me abraçaram, pediram autógrafos… Eu fiquei muito feliz”, relata Lidia.
Paixão pela luta
Mesmo sem subir no ringue, Lidia se transforma quando fala da luta livre. Os olhos brilham. “Não tenho medo de lutar, não. Quando estou em cima do ringue, encaro qualquer um. As pessoas me animam, o público me dá valor, então não me interessa se luto contra dois, ou três. A coisa é lutar para o meu público”.
Sentada sobre um velho sofá apinhado de roupas, papéis e cobertores, na casa de um único cômodo dividido ao meio por um guarda-roupas, Dina não esconde a vaidade. Sua cor para lutar é o vermelho. “Uso sempre um conjunto da manta com a saia, e também combino o chapéu. Até o sapato eu combino, e os brincos grandes, como esse, ficam bem com branco também”, explica.
Assim, além de treinar todas as quarta-feiras e sábados, Dina encara horas de preparação nos dias de luta para ficar elegante. A filha caçula acompanha, dizendo querer também ser lutadora quando crescer. A família do marido telefona para dar palpite. “Perguntam com que saia eu vou, com que xale, porque eu tenho de estar bem bonita”.
Infância difícil
Nascida na cidade de Tupiza, no sul da Bolívia, Lidia ficou órfã ainda cedo. Com 5 anos, após a morte da mãe, o padrasto a levou para La Paz, onde deixou-a com uma família “para aprender a trabalhar”. “Aprendi à força as tarefas de casa. Batiam muito em mim. A esposa era muito má”. Depois de um ano, uma vizinha chamou a menina para morar em outra casa, onde estaria a salvo dos maus-tratos – mas não do serviço da casa.
“Aprendi a cuidar dos filhos dessa senhora. Desde muito cedo eu cuido de crianças”, conta.
Ficou lá por mais alguns anos, até que a morte da matriarca obrigou a lutadora a morar com uma parente distante. Lidia já tinha então cerca de 10 anos e um longo currículo de violência doméstica. Ainda assim, voltou a ser tratada “a patadas”, como ela diz, dessa vez ainda mais violentas.
“Ela me batia muito, me trancava em casa. Eu quase não saía para a rua”, relembra. Foi apenas sete anos depois, quando estava no supletivo, que ela conseguiu se libertar do ciclo de maus tratos.
Chola em momento desvantajoso no ringue. Mas, no final, elas sempre vencem
Volta por cima
Cursando o supletivo noturno, conheceu Santos, com quem se casaria pouco depois. “Quando o conheci, disse 'Vou me casar logo, porque aqui me maltratam muito. É melhor para mim'”, relata.
Lidia tinha 17 anos na época. Nunca concluiu os estudos e até hoje lê muito pouco. Mas, ao acompanhar a carreira de lutador do marido, ela acabou encontrando a sua maior vocação. Um dia, quando Santos ia participar de uma gravação para a TV japonesa, ela foi convidada a entrar em cena. Gostou.
“Desde aquele primeiro dia, nunca mais larguei o ringue. É a coisa de que mais gosto de fazer na vida”, conta Dina, que graças à luta teve a oportunidade de conhecer boa parte do país durante turnês. Mas, além dos novos horizontes, ela não esconde o prazer que sente com a própria luta, ao derrubar um oponente – em especial, se for homem.
“Na minha vida, sempre me maltrataram muito. Agora não. Quem maltrata sou eu”, resume.
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