Às vésperas de viajar a Israel, Palestina e Jordânia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse, em entrevista à Anba e aos jornais israelenses Haaretz e The Marker, que “o mundo está carente de governança global” por falta de representatividade das instituições multilaterais, o que ele acredita ser essencial para a mediação dos conflitos no Oriente Médio, especialmente entre israelenses e palestinos. Ele também insistiu no diálogo direto entre as duas partes.
“Eu fico sempre com uma inquietação: quem realmente quer paz no Oriente Médio, a quem interessa a paz e a quem interessa o conflito? Há sempre alguém agindo como se fosse o inimigo oculto, que sem que a gente saiba não permite que haja acordo”, argumentou Lula.
Ricardo Stuckert/PR
Segundo Lula, funcionários de 1º escalão devem protagonizar diálogo no Oriente Médio
“Eu acho que as Nações Unidas, se voltar a ter representatividade, ela pode ajudar muito no processo de paz no Oriente Médio, alguém que tenha neutralidade para falar a verdade para israelenses, para falar a verdade para palestinos, para iranianos, para os sírios e para quem quiser ouvir a verdade. Eu sinceramente acho que falta um pouco isso nos organismos multilaterais”, afirmou o presidente.
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Ele citou como exemplo o caso de Honduras, onde um golpe de estado derrubou o presidente Manuel Zelaya em junho do ano passado. “Vamos ver o que aconteceu em Honduras: a OEA [Organização dos Estados Americanos] tomou uma decisão unânime condenado o golpe, e o que aconteceu? Nada, os golpistas ficaram até terminar o mandato do presidente democraticamente eleito. Ou seja, num total desrespeito ao fórum multilateral mais importante da região”, declarou Lula.
Para o presidente, novos atores devem participar do processo de paz no Oriente Médio para “arejar” a discussão. O Brasil já há algum tempo se propõe a ter um papel mais ativo nas negociações. Ele disse que pretende trabalhar no tema até o final de seu mandato, em 31 de dezembro deste ano.
“Eu recentemente conversei com o presidente [israelense] Shimon Peres, conversei com o presidente da ANP [Autoridade Nacional Palestina], o presidente [Mahmoud] Abbas, e todos eles concordam que é preciso acontecer alguma coisa nova. É para isso que a gente tem que continuar conversando. Como eu acredito nisso, e tenho mais um ano de mandato, eu vou tentar trabalhar para ver se arejamos a discussão”, ressaltou.
Para Lula, o Brasil tem autoridade para se oferecer como mediador, uma vez que, em sua avaliação, é exemplo de convivência pacífica entre pessoas de diferentes origens. “Eu acho que o Brasil tem um papel importante porque nós somos um país de índole pacífica. Porque aqui 150 mil judeus talvez vivam o maior processo de harmonia com 10 milhões de árabes. Acho que o exemplo do Brasil, sendo o maior país da América Latina, um continente que não tem armas nucleares, onde o máximo de divergência que existe, o máximo de atrito, é verbal, eu penso que teria alguns ensinamentos a oferecer a quem vive num conflito como o Oriente Médio”, destacou.
O presidente afirmou que falta disposição para o diálogo entre os líderes. “Tem determinadas conversas, que eu acompanho pela imprensa, que são feitas por interlocutores de terceiro escalão, de quarto escalão. Eu acho que em algum momento seria preciso chamar os ‘capas pretas’ de cada país e colocar dentro de uma sala nas Nações Unidas e discutir com mais objetividade, com mais seriedade. Eu hoje tenho experiência das negociações feitas no segundo e terceiro escalão, elas são muito importantes, mas não têm 1% da importância de os líderes sentarem em torno de uma mesa e tiverem uma conversa olho no olho. E eu acho que falta isso. Veja, política é essencialmente contato, as pessoas precisam se olhar”, disse.
Lula viaja pela primeira vez aos três países na próxima semana. Leia a seguir os principais pontos da entrevista:
Apoio ao diálogo com o Irã
Acho que nós, que somos dirigentes políticos e governantes, e presidimos um país que tem uma história de paz, uma história forte de convivência democrática na diversidade, nós precisamos acreditar que sempre é possível surgir uma razão ou um argumento novo para que a gente possa desfazer os erros do passado e construir algo novo para o presente. Por exemplo: eu tenho conversado com os presidentes dos principais países do mundo, sobretudo aqueles que fazem parte do Conselho de Segurança da ONU, sobre a questão do Irã. Já conversei sobre isso com os norte-americanos, com os franceses, com os ingleses, com os russos, com os chineses. Eu sinto que todos desejam construir um processo de paz no Oriente Médio, mas eu sinto também que os interlocutores já estão um pouco desgastados nessa negociação, e de vez em quando eu fico me perguntando se não é necessário encontrar outros interlocutores para que, junto com os atuais, possa se construir novas razões, novos argumentos.
Os interlocutores precisam transitar em toda a esfera conflitiva do Oriente Médio, estabelecer quem conversa com quem, dentro de Israel, na Palestina, no Irã, na Síria, na Jordânia, no Catar e em tantos outros países que têm a ver com o conflito, para que a comunidade internacional possa oferecer uma oportunidade a palestinos e israelenses de negociar a paz e ao mesmo tempo de afirmar ao Irã que nós somos contra a construção de bomba nuclear.
Pois bem, é preciso, e eu já tive oportunidade de discutir com o Irã: o Irã não pode continuar falando que vai destruir o Estado de Israel. Da mesma forma, eu disse ao presidente [iraniano, Mahmoud] Ahmadinejad de que é inconcebível negar o Holocausto. Ele existiu, está incrustado na mente da humanidade, e o fato de você ter divergência com o Estado de Israel não precisa te levar a negar a história, podes conhecer a história.
Eu acho que nós precisamos começar a construir o que ainda não existe, não é deixar de discutir o passado, os conflitos e a história, é começar a discutir o que a gente pode discutir a partir de agora para construir a paz. A minha tese é que a gente não pode permitir que aconteça no Irã o que aconteceu no Iraque e que, antes de qualquer sanção, a gente faça todo o esforço possível para reconstruir a possibilidade de paz no Oriente Médio. Daí o porquê a minha visita a Israel, à Palestina e à Jordânia, e daí a minha visita ao Irã no mês de maio.
Nós precisamos trabalhar urgentemente para acabar com as tensões. Eu tenho conversado com alguns líderes e eles têm dito: “Precisamos fazer alguma coisa rápido porque senão Israel pode atacar o Irã”. Ora, eu não quero que Israel ataque o Irã e eu não quero que o Irã ataque Israel. Esse deveria ser o comportamento do mundo hoje. O que eu acho é que as pessoas desaprenderam a conversar.
Processo de paz
Eu sou um homem que nasceu na política, no diálogo, cheguei à Presidência do meu país dialogando, exerci meu mandato dialogando, e eu acredito que através do diálogo nós poderemos resolver todos os conflitos que parecem insolúveis nos dias de hoje. Quando eu digo que é preciso envolver mais interlocutores é porque o conflito no Oriente Médio não é um problema de conflitos bilaterais, e tampouco a solução será encontrada da forma que se tentou nesses últimos anos.
Houve um momento em que eu acreditei mais na paz no Oriente Médio. Se não me falha a memória, em 93 nós fomos a Túnis, encontramos com o [líder palestino Yasser] Arafat, depois fomos a Israel, conversamos com o [então chanceler] Shimon Peres, conversamos com o [então] primeiro-ministro [Yitzhak] Rabin. Naquele tempo eu achava que a paz estava mais próxima, as pessoas tinham mais desenvoltura para discutir o tema. De lá para cá muita gente já ganhou o Prêmio Nobel da Paz, muitas fotografias já foram tiradas, muitos abraços já foram dados, e a cada dia está mais difícil, porque o problema não é Israel e Palestina, o problema é saber os outros interesses no Oriente Médio, que precisam estar na mesa para que a gente possa encontrar a solução. Como o Irã faz parte disso eu acho que é necessário alguém conversar com o Irã.
Eu fico sempre com uma inquietação: quem realmente quer paz no Oriente Médio, a quem interessa a paz e a quem interessa o conflito? Porque se nós não detectarmos isso e não colocarmos todos em volta de uma mesa, a possibilidade de fazer acordo é inócua. Há sempre alguém agindo como se fosse o inimigo oculto, que sem que a gente saiba não permite que haja acordo.
ONU
A ONU, se tivesse a força que precisa ter, poderia ser a grande articuladora do processo de paz do Oriente Médio, mas do jeito que está hoje ela não consegue, porque a representação no Conselho de Segurança já não representa a geopolítica do século 21. Grandes países estão fora, nós estamos com uma representação política da Segunda Guerra Mundial que não representa força econômica e política de 2010. Ou os dirigentes compreendem isso, ou nós vamos ver a falência das instituições multilaterais, o que seria um desastre para a paz mundial.
Desentendimentos com os EUA
O Brasil tem uma relação muito forte com os EUA, os EUA têm sido um parceiro estratégico do Brasil. Entretanto, quando se trata da soberania de um país e das suas relações bilaterais ou regionais, cada um de nós constrói aquilo de acordo com as necessidades do país.
Em 2003, eu tinha apenas 25 dias de governo, fui a Davos, e na volta nós decidimos que iríamos mudar a geografia comercial do mundo, que era preciso diversificar as relações do Brasil e que nós não poderíamos ficar dependendo apenas da relação com os EUA e com a União Européia, que era preciso crescer no mundo árabe, no mundo asiático, na América Latina e na África, e fizemos uma forte atividade política nesses continentes. Os EUA e a União Européia, que representavam, cada um, por volta de 28% a 30% da balança comercial brasileira, embora [o comércio] tenha crescido 20% em média desde que eu tomei posse, representam hoje apenas 13%, porque nós crescemos em todos os continentes. Quando nós criamos o G-5, o G-4, o Ibas, quando nós criamos a Unasul, quando nós agora criamos o grupo América Latina-Caribe, em 200 anos de independência é a primeira vez que a América Latina se reúne sozinha, sem os EUA, sem nenhum país europeu, sem o Canadá.
O dado concreto é que nós estamos procurando mecanismos de fortalecimento de nossas economias e das nossas relações, tentando tirar proveito da proximidade e das similaridades existentes entre nós, e isso não cria nenhum problema com os Estados Unidos. Pelo contrário, quando tivemos a primeira reunião em Trinidad e Tobago, logo depois da posse do presidente [norte-americano, Barack] Obama, eu disse que era necessário que ele tivesse um olhar mais otimista para a América Latina. Fizemos uma reunião com todos os países da América do Sul, com o Obama, foi uma reunião extraordinária, e depois não aconteceu mais nada. Então, nós, definitivamente, não queremos confrontação com os Estados Unidos, o que nós queremos é exercitar de forma soberana as coisas que nós entendemos que vão fazer bem para o Brasil.
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