Abuso e assédio no Metaverso: plataformas são ameaças aos direitos das mulheres, alerta escritora
Laura Bates afirma que promessa de ‘poder fazer quase tudo’ no mundo virtual é ‘promessa atraente para homens’ e ‘assustadora’ para mulheres
De um lado, a constatação da Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade com Crianças (NSPCC, na sigla em inglês) de que as mídias sociais falham em proteger meninas de violações online. Do outro, o grande sonho de Mark Zuckerberg, diretor-executivo da Meta, em construir “um mundo totalmente novo”.
Em meio a isso, um artigo da escritora feminista inglesa Laura Bates no jornal The Guardian que questiona: “se a Meta falhou completamente em manter mulheres e meninas seguras em seus espaços online existentes, por que deveríamos confiar a ela o futuro?”.
Definindo Metaverso como “um mundo compartilhado no qual tecnologias virtuais e aumentadas permitem que usuários (representados por avatares) interajam com pessoas, objetos e ambientes”, Bates resgata a maior promessa de Zuckerberg sobre este novo universo: um local em que os usuários podem “fazer quase tudo que imaginarem”.
“É o tipo de promessa que pode soar extremamente atraente para alguns homens e assustadora para a maioria das mulheres”, adiciona.
Após pesquisar sobre o Metaverso para seu livro A Nova Era do Sexismo (Simon & Schuster Audio UK; 2025), a escritora pontua que “a natureza profundamente imersiva do Metaverso tornará o assédio e o abuso sofridos nas redes sociais 100 vezes mais reais e, ao mesmo tempo, fará com que a moderação seja 100 vezes mais difícil”.
A segurança em fazer tal tipo de afirmação não parte apenas da teoria, mas também da vivência. Bates relata que “menos de duas horas depois de entrar no Metaverso” viu o avatar de uma mulher sendo abusado sexualmente, com ações verbais e físicas permitidas pela tecnologia.
No artigo publicado no periódico britânico, a pensadora transcreve o diálogo que teve no Metaverso após presenciar a cena:
“Quando me aproximei para perguntar sobre a experiência, ela confirmou:
– Ele veio até mim e agarrou minha bunda.
–Isso acontece muito? – perguntei.
– O tempo todo – ela respondeu, cansada.
Usei meu controle tátil para “pegar” um marcador amarelo brilhante e me aproximei de um quadro-negro gigante:
– VOCÊ FOI ATACADO NO METAVERSO? – escrevi.
A resposta foi quase instantânea:
– É, muitas vezes – gritou alguém.
– Acho que todo mundo já foi atacado no maldito Metaverso – respondeu uma mulher imediatamente, com sotaque americano.
– Infelizmente, é muito comum – acrescentou uma mulher britânica, concordando.
Ambas as mulheres me disseram que foram atacadas diversas vezes”.

Captura de tela de um usuário no Metaverso
Ian Hughes/Flickr
Além desta, Bates testemunhou outras ocasiões de assédio, inclusive de pedofilia, e também foi vítima de algumas outras. Em nenhum desses casos, ela registrou a moderação ou intervenção da Meta.
A negligência não ocorreu por acaso. Segundo um relatório da TechCrunch, publicado em 2022, moderadores humanos de um dos jogos do Metaverso da Meta estavam disponíveis em apenas uma localização do jogo e tinham apenas a função de dar informações.
A percepção da escritora não foi a única. Segundo sua publicação, outros pesquisadores também descreveram serem perseguidos virtualmente no Metaverso. O que leva a uma estatística: uma pesquisa do Centro de Combate ao Ódio Digital (CCDH) constatou que usuários foram expostos a comportamentos abusivos a cada sete minutos nesse tipo de plataforma.
A organização ainda registrou que de 51 denúncias de violação de política da Meta (incluindo assédio sexual e aliciamento de menores), nenhuma foi atendida ou resolvida pela empresa.
Além disso, mais um dado da NSPCC revelou que, apesar de outras empresas fornecerem tecnologias semelhantes para as interações de Metaverso, 47% dos crimes de aliciamento online ocorreram em produtos de propriedade da Meta, levando em consideração que outras empresas fornecem plataformas semelhantes com outros nomes.
“Durante 11 horas e meia de registro do comportamento dos usuários, foram identificados 100 potenciais violações das políticas da Meta. Isso incluía conteúdo sexual explícito, bullying, abuso, aliciamento e ameaças de violência”, destaca a escritora.
E a Meta?
A Meta já se posicionou sobre um caso de abuso em seu Metaverso. Após um testador beta da plataforma Horizon revelar ter sido testemunha de assédios, Vivek Sharma, então vice-presidente da Horizon, declarou que o ocorrido foi “absolutamente lamentável”, mas “um bom feedback” para o desenvolvimento da plataforma, e adicionou que o testador não utilizou os recursos de segurança disponíveis, como bloquear o outro avatar.
“Essa resposta foi reveladora. Primeiro, a descrição eufemista do evento como “lamentável”, o que a fez soar equivalente à má qualidade do som. Segundo, a transferência imediata da culpa e da responsabilidade para a pessoa que sofreu o abuso – “ela deveria ter usado certas ferramentas para evitar” – em vez de um reconhecimento de que o abuso deveria ter sido evitado desde o início. E, por fim, e mais importante, a descrição de uma mulher sendo abusada online como “um bom feedback”, opinou Bates.
Analisando outras respostas da Meta em casos de violência no Metaverso, Bates afirma que o foco da empresa sempre está em orientar os usuários vítimas a prevenir ou denunciar os abusos, e nunca na prevenção dos crimes na plataforma ou medidas sérias contra os agressores.
A escritora exige posicionamentos da Meta, destacando que “a experiência de ser assediado sexualmente, agredido ou estuprado no Metaverso teve um impacto profundo e angustiante em muitas vítimas”, baseado em relatos da polícia inglesa.
Além disso, menciona que não são “pedidos demais”, uma vez que o Metaverso é construído com o “rastreamento e coleta de dados, conteúdo, fotografias, ideias” de cada usuário.
“Não podemos deixar as empresas de tecnologia escaparem porque elas alegam que o problema é muito grande ou muito difícil de resolver. Em segundo lugar, a tecnologia para fazer o Metaverso parecer fisicamente real está se desenvolvendo rapidamente. Você já pode comprar trajes de corpo inteiro que prometem ‘aprimorar sua experiência de RV com elaboradas sensações táteis’. Eles têm mangas, luvas e coletes com dezenas de pontos de feedback diferentes. A tecnologia tátil vestível tornará a experiência de ser agredido virtualmente muito mais próxima da sensação física de vitimização na vida real. Mais um motivo para lidar com isso agora, independentemente de quão ‘realista’ seja ou não, em vez de esperar que as coisas piorem”, insta.
Além de prevenir crimes virtuais, Bates ressalta que caso a moderação de tais comportamentos não seja realizada, mulheres e meninas ficarão fora das novas tecnologias, e “se o Metaverso realmente se tornar tão amplamente adotado e onipresente em nosso dia a dia quanto Zuckerberg espera, não haverá uma maneira fácil de optar por não participar”.
“Se a visão de Zuckerberg se concretizar e as salas de reunião, salas de aula, salas de cirurgia, auditórios e espaços de reunião do futuro existirem em realidade virtual, então fechar esses espaços para mulheres, meninas e outros grupos marginalizados, devido à tolerância a diversas formas de preconceito e abuso no Metaverso, será devastador”, pontua.
Ao afirmar que a situação é “deprimente”, Bates questiona a criação de um novo mundo que não ousa “sonhar” que “aqueles que tantas vezes sofrem abusos estejam seguros por natureza – com a prevenção e a erradicação do abuso”.
Ao finalizar o artigo, a escritora comentou o fato de a Meta não ter respondido, após ser convidada a se posicionar sobre o tema.
“Enquanto lutamos para erradicar o assédio e o abuso endêmicos que mulheres e meninas enfrentam em cenários do mundo real, o Metaverso corre o risco de retroceder. Estamos caminhando, sonâmbulos, para espaços virtuais onde o direito dos homens aos corpos das mulheres é mais uma vez disseminado e normalizado com quase total impunidade”, critica Bates.
(*) Com informações de The Guardian