“(…) luto pela perda de entes queridos, choque com a perda de empregos, isolamento e restrições à circulação, dinâmicas familiares difíceis, incerteza e medo do futuro. Problemas de saúde mental, incluindo depressão e ansiedade, são algumas das maiores causas de miséria no nosso mundo. (…) Após décadas de negligência e de investimento insuficiente em serviços de saúde mental, a pandemia de covid-19 está a atingir famílias e comunidades com um stress mental adicional. (…) Mesmo quando a pandemia estiver sob controle, a dor, a ansiedade e a depressão continuarão a afetar as pessoas e as comunidades. (…). Os serviços de saúde mental são uma parte essencial de todas as respostas do governo à covid-19. (…) Apelo aos governos, á sociedade civil, às autoridades de saúde, e à outros, que reúnam com urgência para abordar a dimensão da saúde mental desta pandemia”. (António Guterres. ONU: Serviços de saúde mental devem ser parte essencial de respostas ao coronavírus, maio de 2020)
O discurso do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, para o lançamento do relatório Covid-19 and the Need for Action on Mental Health, em 13 de maio de 2020, deixa claro que, apesar da pandemia de covid-19 ser uma crise de saúde física, ela produz uma ampla crise de saúde mental com potencial de agravamento da miséria do mundo.
Epidemias, pandemias, guerras e desastres naturais compõem o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) definira como sendo o quadro das emergências humanitárias. Seu impacto sobre a saúde mental é enorme, conforme é destacado Guia de Intervenção Humanitária (GIH-mhGAP):Manejo Clínico de Condições Mentais, Neurológicas e por Uso de Substâncias em Emergências Humanitárias (OPAS, 2020):
- O agravamento de sofrimentos psíquicos preexistentes – como é o caso da psicose, do transtorno depressivo moderado a grave e do uso prejudicial de álcool e outras drogas;
- O desencadeamento de outras formas de sofrimento, diretamente decorrentes da exposição humana às condições de crise humanitária, como é o caso do estresse agudo, luto, transtorno de estresse pós-traumático.
Sem mencionar, aqui, as situações de conflitos e guerras, a humanidade viveu, nos últimos quarenta anos, sob a pressão de epidemias/pandemias virais com forte impacto sobre o bem-estar psicossocial de indivíduos e comunidades. A tabela 1 apresenta sinteticamente, um traçado histórico das epidemias que irromperam no mundo a partir da década de 1980.
Tabela 1. Breve histórico de epidemias/pandemias a partir da década de 1980.
Se estiver no celular, arraste com o dedo a tabela para o lado
Epidemias/ Pandemias |
Ano |
HIV/AIDS |
1980-1990 |
SARS |
2002-2003 |
H1N1 (pandemia de Influenza) |
2009 |
EBOLA |
2013 |
ZIKA |
2016 |
covid-19 |
2019 |
Fonte: Adaptado de Zhang et al, 2020.
A covid-19 irrompeu no mundo em dezembro de 2019. Provocada pelo vírus SARS-COv-2, primeiramente, fora localizada como uma epidemia regional, localizada na província de Wuhan, na China. Na época, parecia distante do que, ainda, acreditávamos ser o mundo ocidental. No entanto, em 30 de janeiro de 2020, a OMS declara o surto da covid-19, como uma emergência de saúde pública de magnitude e importância internacional alertando para o alto risco de contaminação de todo o mundo. Em 9 de março de 2020, o governo italiano anuncia medidas emergenciais severas de contenção do vírus; em 11 de março de 2020, a OMS decreta como pandêmica a covid-19.
Da Ásia à Europa, à África e às Américas, foram apenas três meses, sucumbindo o mundo em uma emergência humanitária veloz, dado o grau de contaminação da SARS. O vírus mostra, então, como a distinção entre a China e o Ocidente não faz o menor sentido. No caso específico do Brasil, desde janeiro de 2020, a OMS dá suporte ao Ministério da Saúde para a produção de respostas à covid-19. Nosso primeiro caso foi registrado em São Paulo, em 26 de fevereiro de 2020.
Estamos, certamente, longe de um horizonte de solução da pandemia de covid-19 no mundo, por meio de medicamentos antivirais e desenvolvimento de vacina que impeçam a infecção viral. Mas, se de um lado, hoje, ainda estamos neste ponto no campo da saúde física, de outro, dispomos de uma experiência histórica sobre o impacto de situações de emergência humanitária na saúde mental de indivíduos, família e sociedade.
Hailey Kean/Unsplash
Pandemia impõe que governos pensem na saúde mental da população
Sabemos, pelos registros históricos de outras situações de emergência humanitária, como é o caso da I Guerra, a relevância da preocupação com a irrupção de uma crise de saúde mental.
No contexto imediato do final da I Guerra, denominada por muitos de inferno, o médico fundador da psicanálise Sigmund Freud (1918) avaliara a saúde de soldados do front e da própria população sobrevivente. Alertando para a miséria do mundo que se abria para a humanidade naquela época, com o aumento dos casos de neurose, dos sentimentos de desamparo e angústia, Freud (1918) prevera uma equivalência epidêmica dessas formas de sofrimento mental à própria tuberculose.
No contexto da pandemia de covid-19, o estudo de Lai et al (2020) registra na república da China, altas taxas de ocorrência de depressão (50%), ansiedade (45%) e insônia (34%) em profissionais da saúde. E isso também se verifica na população em geral. A ONU (2020) cita dois estudos recentes na Etiópia e no Canadá. Os dados de Ambaw et al (2020), referentes a população do estado de Amhara, na Etiópia, estimaram um percentual de 33% de sintomas consistentes para transtorno depressivo no contexto da pandemia de covid-19, representando um aumento de 3 vezes em comparação com as estimativas da Etiópia antes da pandemia. Essas estimativas ganham uma gravidade adicional quando se verifica que, para lidar com o fator estressor da pandemia, os indivíduos recorrem ao uso de substâncias psicoativas, ou desenvolvem comportamentos aditivos relacionados a internet. A estatística do Canadá sobre consumo de álcool evidencia que 20% da população entre 15 e 49 anos aumentou o consumo durante a pandemia de covid-19.
Esses dados recentes corroboram o próprio quadro sintomático já identificado no primeiro trimestre de uma emergência humanitária tal como é apresentado pelo documento da Fiocruz (2020) – Saúde mental e Atenção psicossocial na Pandemia covid-19: Recomendações Gerais. O documento prevê a ocorrência de reações similares na pandemia de covid-19, considerando a data de início do primeiro trimestre em cada região:
- Medo: de adoecer e de morrer pela doença; de infectar outras pessoas; de perder entes queridos; de perder os meios de subsistência e a renda; de ser excluído socialmente ou por ter a doença ou por ser um profissional da linha de frente.
- Sensações de: incerteza quanto ao futuro, impotência frente aos acontecimentos, desamparo, solidão, tristeza, luto e ansiedade.
- Alterações comportamentais: alimentares (ter mais apetite ou menos apetite), no sono (insônia ou sono em excesso, pesadelos).
- Agravamento de conflitos interpessoais com familiares, no trabalho.
- Alterações no pensamento: pensamentos recorrentes sobre a pandemia, a saúde dos entes queridos, a morte e o morrer.
O quadro acima indica como o contexto de emergência humanitária é uma condição de estresse severa e adicional às populações, impactando diretamente no bem-estar psicossocial. No entanto, o conjunto de registros acumulados sobre esse impacto, não impediu que a área de saúde mental fosse das mais negligenciadas pelos governos. O relatório da OPAS, A carga dos transtornos mentais na região das Américas (2018), mostra que na América Latina, Caribe não latino, América do Sul, Canadá e Estados Unidos, problemas de saúde mental são responsáveis por mais de 1/3 do número total de incapacidades. E, no entanto, o relatório registra como o financiamento em saúde mental estava abaixo do necessário, não respondendo à cobertura das necessidades na área. Até 2018, o déficit variava de 3 vezes a mais que os gastos atuais em países das Américas de alta renda a 435 vezes os gastos nos países de mais baixa renda da região (OPAS, 2018). O que explica a preocupação da ONU em conscientizar os países para reverter a negligência e o baixo investimento em serviços de saúde mental em prol da ampliação da cobertura psicossocial para indivíduos, famílias e comunidades que foram afetadas pelos impactos da incerteza quanto ao desenvolvimento de medicamentos e vacina para a covid-19, da incerteza quanto ao futuro, do isolamento e das perdas de entes queridos que não puderam ser elaboradas por meio do ritual coletivo do luto e do funeral.
No contexto de uma pandemia da magnitude da covid-19 – em que a medida de isolamento e, mais radicalmente o lockdown, são atualmente as principais direções de prevenção e tratamento para o vírus, e que a incerteza quanto ao futuro se consolida como horizonte em um cenário ainda sem remédio e vacina – é crucial a valorização, pelos países, do investimento na área de saúde mental por meio do incentivo à formação e consolidação de grupos de pesquisa dedicados à investigação ampla, interdisciplinar e transdisciplinar dos determinantes biológicos, psicológicos e sociais do sofrimento psíquico, bem como ao desenvolvimento de medidas para sua prevenção e tratamento.
(*) Cláudia Henschel de Lima é professora associada da UFF (campus de Volta Redonda) e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ.
Referências
Freud, S. Linhas de Progresso da técnica Psicanalítica (1918). In: Freud, S. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de janeiro: Editora Imago, 1987.
Guterrez, A. ONU: serviços de saúde mental devem ser parte essencial de respostas ao coronavírus, maio de 2020. https://nacoesunidas.org/onu-servicos-de-saude-mental-devem-ser-parte-essencial-de-respostas-ao-coronavirus/
Ministério da Saúde. Fiocruz. Saúde mental e Atenção psicossocial na Pandemia covid-19: Recomendações Gerais. Brasília: FIOCRUZ, 2020.
Organización Panamericana de la Salud. Organización Mundial de la Salud. La carga de los trastornos mentales en la Región de las Américas. Washington DC, 2018. www.paho.org.
Organização Panamericana de Saúde. Organização Mundial da Saúde. Guia de Intervenção Humanitária (GIH-mhGAP): Manejo Clínico de Condições Mentais, Neurológicas e por Uso de Substâncias em Emergências Humanitárias. OPAS, 2020. www.paho.org.
United Nations. Policy Brief:covid-19 and the Need for Action on Mental Health https://www.un.org/sites/un2.un.org/files/un_policy_brief-covid_and_mental_health_final.pdf
Zhang, J., Wu, W., Zhao, Z., Zhang, W., 2020. Recommended psychological crisis intervention response to the 2019 novel Coronavirus pneumonia outbreak in China: a model of west China hospital. Precision Clinical Medicine, 3(1), 2020, 3-8. https://doi.org/10.1093/pcmedi/pbaa006. pbaa006.