A epidemia de covid-19 voltou a se impor na Europa, apesar do acesso à vacinação, e pouco a pouco os governos de diversos países voltam a impor medidas para conter a propagação do vírus, que atinge principalmente a parcela da população não imunizada. Diversos protestos ocorreram na Bélgica e na Holanda neste fim de semana, onde o governo retomou várias restrições diante do aumento das contaminações.
A onda de protestos contra o retorno das restrições sanitárias se espalha quase na mesma velocidade que o vírus da covid-19 na Europa. Neste domingo (21/11), pela 3ª noite consecutiva, as manifestações causaram tumulto e estragos nas cidades holandesas de Enschede, perto da fronteira com a Alemanha, em Groninguen e Leuwardeen, no norte, e em Tilburgo, no sul do país. Os participantes protestam contra o lockdown parcial reintroduzido pelas autoridades, o fechamento de bares e restaurantes às 20h e a restrição do acesso de não-vacinados a certos locais.
A Bélgica também foi palco de manifestações neste fim de semana. Cerca de 35 mil manifestantes foram às ruas de Bruxelas neste domingo para demonstrar sua revolta contra medidas que haviam sido abandonadas há meses no país e foram retomadas nesta sexta-feira (19/11) pelo governo. Entre elas, a obrigatoriedade do passaporte sanitário e o retorno das máscaras e do trabalho à distância generalizado.
Durante o protesto, que começou de forma pacífica, um grupo de manifestantes jogou pedras e fogos de artifício nos policiais, que reagiram com bombas de gás lacrimogêneo e jatos de água. Carros foram vandalizados e fachadas e móveis públicos foram incendiados nas ruas. Atualmente, o país registra 10.300 novas infecções diárias e a velocidade de propagação do vírus é a maior observada em um ano.
Em outros países, como a Áustria, que iniciou um lockdown nacional nesta segunda-feira (22/11) e na Alemanha, que vive uma violenta onda epidêmica por conta da taxa insuficiente de vacinação, os protestos também continuam. Hoje, o ministro da Saúde alemão, Jens Spahn, disse que os alemães estarão “vacinados, curados ou mortos” até o final do inverno, com a rápida propagação da variante Delta no território.
Apesar da grave situação epidêmica, o que revela a revolta que se propaga nos países europeus? O historiador francês Laurent-Henri Vignaud é especialista em História da Ciência e co-autor do livro ANTIVAX, La résistance aux vaccins du XVIIIe siècle à nos jours (Antivacinas, a resistência às vacinas do século 18 aos dias atuais, em tradução livre).
Em entrevista à RFI Brasil, ele explicou que é provável que uma parte da população tenha se decepcionado com a promessa de alguns governos de que a vacina bastaria para acabar com a epidemia. O historiador francês explica que os protestos na Europa são, principalmente, uma crítica à gestão política da epidemia, e não às vacinas em si.
“Na Europa, é evidente que estamos vivendo uma onda de contaminações intensa e o perigo epidêmico está presente”, diz. “Mas, entre as pessoas que estão nas ruas, há provavelmente algumas que são vacinadas e estimam que fizeram o ‘esforço’ necessário para controlar a epidemia. Nesse sentido, podem considerar abusivas todas as medidas extras tomadas pelo governo. Para elas, não é normal que algumas restrições sejam reintroduzidas”, avalia Laurent-Henri Vignaud.
De acordo com ele, o descontentamento popular também pode estar ligado ao discurso “um pouco otimista demais” dos governos europeus, que prometeram que, com a chegada da vacina, a crise sanitária chegaria ao fim. “A vacina chegou, mas a crise continua, e isso é pouco demais para o nível de compreensão de algumas pessoas”, ressalta o historiador.
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Epidemia do novo coronavírus voltou a se impor na Europa, apesar do acesso à vacinação
Os estudos mostram que os imunizantes, principalmente à base de RNA mensageiro, são eficazes contra as formas graves da variante Delta, mas não impedem a transmissão. Além disso, como mostram várias pesquisas, a eficácia dos produtos tende a diminuir com o tempo, o que vem levando alguns governos a aprovar a terceira dose para a população maior de idade seis meses depois de ter recebido a segunda injeção.
“Fenômeno de países ricos”
O público não especializado, reitera o historiador francês, pode ter dificuldades em entender o papel da vacina no controle epidêmico – prevenir formas graves e mortes sem evitar, entretanto os contágios, que podem se propagar rapidamente caso a taxa de vacinação seja insuficiente. Esse é o caso, por exemplo, da Alemanha, que vive seu pior momento desde o início da crise sanitária e cuja taxa de vacinação da população em geral, de 68%, é uma das piores do continente.
“A hesitação vacinal é um fenômeno de países ricos e principalmente ocidentais, do hemisfério norte”, ressalta o pesquisador francês. Os países do sul estão mais acostumados ao risco epidêmico e a enfrentar um certo número de doenças graves, como é o caso da malária na África, por exemplo”, cita. “O risco epidêmico para as populações que vivem no países do hemisfério sul é algo cotidiano e concreto. Esse não é o caso das populações no norte, por razões variadas”, explica.
Segundo Laurent-Henri Vignaud, há uma “defasagem no mundo” em relação à necessidade da vacinação, e isso não se refere somente à covid-19. “De um lado temos uma parte do mundo, em situação mais precária, que primeiro leva em conta o risco epidêmico. Nos países ricos, as pessoas se sentem no direito se questionar o que há nas vacinas, já que o risco de morrer, na opinião delas, é ‘menor'”, explica, se referindo, por exemplo, à rede de atendimento médico e hospitalar de países como a França, que é gratuita e acessível para toda a população.
“Quando observamos o comportamento dos antivax (pessoas contrárias às vacinas) e dos antipass (contra o passaporte sanitário), eles não só minimizam o risco como chegam ao ponto de negá-lo”, ressalta Laurent-Henri Vignaud, lembrando que alguns grupos complotistas franceses defendem que a epidemia é uma invenção da OMS (Organização Mundial da Saúde) para controlar a população. “Eles são, entretanto, minoritários”, ressalta.
Franceses aprovaram passaporte sanitário
O pesquisador também chama atenção para o fato de a França ter se “conformado” com o passaporte sanitário, que apesar de sua população ser conhecida por contestar as decisões do governo, o país tem uma das maiores taxas de vacinação da Europa e do mundo, com mais de 75% das pessoas imunizadas.
“Depois das manifestações do mês de agosto, o passaporte sanitário é, no fim, bem aceito. Podemos notar uma certa docilidade da população francesa que vai na contramão dos clichês habituais. Mas quando o Estado oferece uma solução igualitária – os franceses são muito apegados a esse princípio, pode dar certo. O passaporte sanitário foi uma medida que acabou sendo aceita no país porque as pessoas entenderam sua lógica”, reitera.
“O governo incitou à vacinação para que o país pudesse sair da crise e para evitar a saturação dos hospitais. Neste sentido, explica, aqueles que se vacinaram agiram como bons cidadãos dentro dessa lógica, então é normal, entre aspas, que sejam recompensados pelas suas boas ações e que os outros, que se recusam a ser imunizados, sejam sancionados e tenham restrições de liberdade em relação aos outros”, resume.