Penso em minha família por parte de mãe e me perco na
dimensão cronológica dos acontecimentos. Parece que deslizo pelos episódios que
me foram contados e eu mesma, a despeito de mim, me torno parte deles.
Engraçado que eu tava ontem mesmo num papo vai papo vem com
a Aninha e acabei perguntando como que ela fazia para cantar bonito, alegre e
triste assim, feito um pássaro. Aí me disse: eu fico pensando em cantar as
músicas de um jeito que eu gostaria de tê-las ouvido. É meio o que você diz da
literatura.
Sim, é verdade.
Eu gosto de ler as histórias que desejava ter escrito e
gosto de escrever as histórias que desejava ter lido.
Tia Nora tricotou minha primeira vestimenta de frio. Dentro
daquele cachecol azul eu passei horas que tiveram a duração de dias muito quentes.
Não consegui olhar seu corpo no caixão.
No pau-de-arara de Minas Gerais para Vitória, ela e os
irmãos e irmãs fizeram a viagem juntos, à exceção do tio Aristides que já era
mais crescido e ficou de família nova no Jequitinhonha. Todos apertados, um
joelho encostando no outro. Tia Nora sabia de cor as músicas que cantaram ao
longo da viagem. Suponho terem sido músicas sobre jesus ou sobre as flores que
desabrocham.
De Vitória seguiram ainda juntos para São Paulo, acho que o
tio Hermelino ficou em Vitória também pra fazer família.
Chegaram ao Capão Redondo e foi aí parece que a diáspora se
intensificou. Eu sei da parte que me cabe no lance: minha mãe voou pra Belém do
Pará atrás da formação universitária porque lá era mais democrático o processo
seletivo. Foi muito jovem rasgar a barriga do caminho desse mapa brasileiro,
sozinha, cair numa cidade quente e úmida, cheia de mangueiras, com gente boa e
gente ruim, abriu a vida nos dentes mesmo que alguns lhe faltassem. Mais tarde
a gente fez o caminho inverso – eu e minha irmã – e cá estamos novamente em São
Paulo.
Agora vivemos uma outra fase da cisão: a morte de nossos
sobreviventes. As raízes da família Franca estão ficando ralas como sopa de
pedra. O tempo é inquieto, corajoso, só caminha pra frente – eu queria que
fosse mentira mas é verdade.
Ano passado, no velório da tia Iracema, tia Nora lamentou
estar enterrando todas as irmãs, mesmo sendo ela a mais velha. Depois comentei
eu com minha irmã que tia Nora também nos enterraria, e nós duas rimos um riso
triste, ainda muito melancólico pela partida de tia Cema.
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Reprodução/Paloma Franca Amorim
Quando minha mãe estava doente no hospital em Belém, já para morrer, tia Nora me telefonou de São Paulo e perguntou desesperada quanto custava uma passagem de ônibus para ela ir ver a irmã pela última vez, eu respondi chorando que eram uns quinhentos reais. Naquele momento não dispúnhamos desse dinheiro, além disso não havia tempo, não tínhamos também os três dias de viagem que as estradas consomem.
Eu e tia Nora ficamos em silêncio, de mãos dadas, cada uma numa ponta do aparelho telefônico.
Em novembro, eu fui visitá-la na antiga casinha do Capão onde passei algumas férias. Fiz várias fotos dela, do tio Viana, da Luciana que é minha prima. O Brian também tava lá, filho da Luciana, meu primo de segundo grau. Eles me mostraram um álbum com fotos antigas da família, ali estava aquela famosa imagem do aniversário de 60 anos de meu avô na roça, em Almenara.
A família toda reunida, ainda sem as gerações mais recentes. Eu mesma nunca estive no Vale do Jequitinhonha, fui nascer na Amazônia, outra banda do país.
Todos muito sérios na fotografia como se sorrir e tirar um retrato de festa fossem duas coisas diferentes, duas atitudes trabalhosas que exigiriam por si um método específico. Sorrir. Fazer uma fotografia. Tudo custava muito caro pra essas pessoas, nesse tempo afastado que já não me cabe nas décadas pelas quais tento passear, em contas de cabeça, para tentar a compreensão de tudo aquilo que me antecede. A minha história não está nas coisas, nos monumentos, nos sobrenomes fortes, minha história está no corpo dessa minha gente que teve que se separar pra poder sobreviver, essa minha gente que é peregrina desde cedo. Minha gente é personagem invisível do progresso, carrega as grandes cidades nos ombros, tem as mãos feridas pelos acidentes de fábrica, tem as costas doídas pelas faxinas na casa do patrão, tem o corpo desgastado pela sobrecarga de trabalho. Pulmões fracos de asma congênita e de tristeza. Minha gente é preta, minha gente é pobre. Minha gente é carne de terceira quando dá entrada na urgência do Hospital do Campo Limpo.
Minha gente pede no final do dia, orando antes do jantar, para que na mesa de mais ninguém falte comida. Minha gente agradece todas as manhãs o milagre da vida. Minha gente é filha da distância e mãe da saudade. A história da minha gente é a história de todo povo migrante desse país.