Outro dia um leitor perguntou,
com honesta curiosidade como bem disse quando afirmou não estar tentando me
engaiolar numa teia capciosa, por que eu continuava vivendo em São Paulo. Ele
reparou que sempre falo com muita mágoa da cidade. Isso me fez refletir sobre
alguns pontos e realizar o exercício de entender minha relação com esse lugar.
Além disso, quem disse que não sinto
mágoas de Belém? Lá também me aconteceram coisas tristes e ruins. É evidente
que em Belém nunca fui estrangeira, cabia na cidade como uma peça que se aconchega
na lacuna do quebra-cabeça porque saiu de lá, rodou e se perdeu no
embaralhamento, mas depois regressou às origens, mosaico de chegar e partir.
As cidades, no final das contas,
são apenas uma esperta justificativa, a pista falsa, para que possamos falar de
nós mesmos e do que as memórias das ruas, das casas e das pessoas podem nos
provocar intimamente.
Gosto, por exemplo, de passeio de
carro por SP. Mas não qualquer carro. Passeio de carro no carro da Michele. E
eu poderia estar ao volante, mas é bom que seja a Michele dirigindo, porque aí
enfio a cabeça na janela como um cão e aproveito a ventania que se move no
contrafluxo de um trânsito livre, raríssimo aqui, por isso mesmo especial. Essas
viagens se dão sempre quando erramos o caminho, porque normalmente a finalidade
inicial da corrida não é passear e sim levar alguma coisa de um lugar para o
outro, ou achar um restaurante em conta, ou chegar no horário em algum
compromisso sem ter que sair com duas horas de antecedência de casa.
Quando a Michele anuncia que
perdeu a entrada certa, eu celebro em silêncio e finjo preocupação, tentando
ajudá-la olhando a próxima saída no mapa do celular – esse que não entendo nem
quando está oportunamente de cabeça pra cima.
Michele sabe que estou fingindo
porque fico com um leve sorriso no rosto, como se uns ganchos de anzol se
segurassem com as patinhas nas duas extremidades de meus lábios, pescando-os
pelas pontas, tascando-me nas faces uma aparência meio irônica, meio séria.
Eu gosto de ver o que se passa lá
fora. As pessoas nas calçadas, os percursos a se emaranhar nas vistas, a
paisagem à sessenta por hora. Enquanto isso vamos ouvindo um samba que a Rafa
põe no som e conversamos. Nossos temas são vastos mas sempre culminam em alguma
análise política, o medo do futuro ou a risada de uma cobrança do presente que
não pode ser contornada sem algum humor para salvar a pele, os pensamentos, o
suor na testa produzido pelo vapor de um túnel que pegamos por engano para
chegar à zona norte e que, invariavelmente, nos levará à zona sul.
Prefiro viajar em metrô da linha
vermelha. Porque depois da Sé, mais ou menos, ele sai de debaixo da terra, numa
irrupção perigosa e sutil, e passa a circular pela superfície, então dá pra ver
a cidade num estirão correndo pro contrário, fugindo da parada final, meu
destino.
Parece dizer: por que você
insiste em seguir na direção errada?
E torna a repetir.
E de novo.
Da janela do trem pra Osasco
também dá pra ver muita coisa. O trem passa ao lado do rio Pinheiros. O fedor
ultrapassa a lataria dos aviões sobrevoando essa grande bandeja de arranha-céus.
Ontem mesmo pensei como me entristece ver um rio assim sem respirar. Eu, que já
bati perna em tanto rio vivo, não posso com a morte das águas. Parece que meu
coração se enfia num buraco, o peito todo terra de mangue, e afunda, afunda,
afunda, enlameado. Vai, dê desconto pra essa mágoa, que era final da tarde, o
pôr-do-sol sempre me bota pra baixo, ainda mais diante de uma maré assim toda
sepultada.
Eu não posso ir embora de São
Paulo por diversas razões, e mesmo que fosse, a essa altura do campeonato, São
Paulo já está tão entranhada em mim quanto Belém. Como poderia apagar das
retinas tantos fotogramas?
Não se trata de ser individualmente
feliz ou infeliz num lugar, às vezes não há como fugir da realidade. Por isso é
tão importante olhar além de si. Olhar para todas as coisas e as gentes até a
última gota e esperar que todas as coisas e as gentes se mostrem no inteiro da
beleza que lhes é intrínseca, apesar de tanta aridez e solidão.
A moça chamada Tati que circula
pela Paulista eu vi hoje. Ela está cada vez mais magra e confusa. Quando ainda
me reconhecia, costumava contar a própria história com orgulho, pedia um prato
de comida, dizia ser prostituta e portadora de HIV.
Era de manhã e ela atravessava a
rua. Carregava nos ombros um cobertor cinzento, nas mãos o par de sapatos
vermelhos, não entendi por que estava descalça. Tentei falar com ela, mas já
não conseguimos nos conectar, seus olhos estalados me deram a impressão de ter
usado alguma droga. Ela foi caminhando na minha frente e eu preocupada com o
fato de estar pisando direto no asfalto, talvez como a Nancy costumava reparar
em casa, ordenando que eu calçasse chinelas pra não pegar doença do chão.
De repente, notei que ao andar sobre
a faixa de pedestres a Tati dava saltos, atrapalhando a multidão. Ela tentava
pisar apenas nas listras brancas, em jogo de equilíbrio que me pareceu cheio de
lógica e surpresa. Tati tão concentrada parecia uma Alice atravessando a ponte quebradiça
de uma cidade desejada por mim na qual ela seria, em breve, na outra borda do
precipício, coroada imperatriz.
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