Essa madrugada, tive a graça de
sonhar com Marielle Franco. Talvez por benção do acaso ou por ter prestado
muita atenção no samba que a Mangueira fez em sua homenagem para o carnaval do
ano que vem. Sei que minha sorte não foi apenas constituir na subconsciência a
imagem de Marielle como se tomasse parte numa fotografia, estática e congelada
no tempo. Sonhei uma Marielle viva e em movimento, passei por esse fenômeno
talvez inédito em toda o meu percurso como sonhadora profissional, dessas que
se alimentam do profundo interior da realidade, até mesmo nos exercícios
memoriais do que foi o dia, para tentar lançar dados temáticos ao profundo
sono. Às vezes dá certo. Às vezes quando mentalizo com muita força uma pessoa
pela qual me apaixonei ou uma cidade que me encantou pela revista de viagens
antes de dormir eu consigo sonhar com elas.
Porque nunca vi Marielle Franco ao
vivo fiquei realmente impressionada com a verdade inscrita no episódio de meu
sonho, como se já tivéssemos nos encontrado muitas vezes de modo que meu
cérebro pudesse ter articulado referências, modelos, para a gênese de seu
simulacro espontâneo, sobre qual eu não posso exercer nem mesmo o mínimo
controle quando estou adormecida. É meu profundo falando comigo num gesto muito
liberto das amarras morais cotidianas.
Marielle, portanto, no sonho não
estava discursando ou com o rosto estampado sobre uma superfície de propaganda
política. Não. Ali ela participou muito rapidamente de uma situação em que eu
estava em risco. Um risco obscuro, uma desventura quase atmosférica de tão
impalpável. Eu só sentia terror.
Havia essa máquina que chegara à
cidade. Qual um circo chamou a atenção de todos nós, habitantes de longa data
do lugar. A máquina se abria por conversores e para assistir ao espetáculo que
ocorria em suas entranhas, por perto das musculaturas fibrosas das engrenagens,
era preciso pagar um ingresso caríssimo. Num primeiro momento, percebi que para
mim seria impossível o acesso à experiência. Eu trabalhava como costureira e
estava fazendo um vestido para o Julinho pelo qual ele só me pagaria no final
do mês, conforme havíamos acertado por telefone. Assim que desligamos o
aparelho tocou novamente. Para minha surpresa uma rádio havia sorteado o meu
número e o prêmio era um ingresso especial para a apresentação da noite de
sábado.
Na data e hora marcadas eu estava
lá, em meio à elite da cidade, usando minha roupa mais bonita, amarela, com o
cabelo trançado porque me sentia, também, muito triste naquela estação em que
os girassóis morreram comidos pelo mofo. De repente uma comporta se abriu e o
público entrou em procissão, todos essencialmente curiosos, mas fingindo não
estar. Não queriam parecer bárbaros diante da grande novidade.
Uma vez que todos estavam
acomodados dentro da máquina, ouvi um estrondo de grade se fechando. Daí pra
frente foi um horror. Luzes piscando e barulhos de gritos. Estímulos sonoros e
visuais perturbadores que as pessoas consumiam com emulada empatia. Eu sentia o
medo pairar no ambiente, mas ninguém falava nada. De repente, de dentro da
minha garganta saltou um grito correndo de mil feras e eu pedi para ir embora
dali. Uma moça da produção me puxou de canto e disse que depois que o espetáculo
começava nada podia parar a destruição que ele causaria. Eu implorei pra ela e
voltei ao centro da plateia. Continuei gritando. Acho que até chorei de
desespero. Às vezes o pavor se dá por aquilo que não é objetivo, apenas
sentimos a presença do perigo e nosso corpo reage à margem da razão. Quando
meus gritos estavam roucos eu ouvi a porta se abrindo. O espetáculo parou. A
Marielle apareceu, entrou, foi até mim, me pegou pela mão com cuidado e me
tirou de dentro da máquina. Lá fora no estacionamento ela avistou o carro de
minha irmã e me entregou aos seus cuidados. Eu agradeci a proteção. Minha irmã
me abraçou. Eu falei que não queria me fazer de vítima. Minha irmã disse pra eu
esquecer isso, que eu não era vítima. Marielle confirmou: tu não és vítima.
Depois nos despedimos. Lá de longe ela nos acenou e lançou no ar, com uma
sabedoria secular na voz, uma frase muito importante que não me esqueço. Uma
frase de Marielle Franco que me ensinou demais nessa benção que tive de poder
sonhá-la. Essa frase trago comigo até hoje. O mais bonito foi que ela aconteceu
na língua do silêncio e coisas ditas na língua do silêncio eu não posso
traduzir.
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