Encontrei meu amigo Geovani em Botafogo e comentei que ia fazer a mesa da minha vida com a Conceição Evaristo, a Teresa Cárdenas e a Eliana Alves Cruz, mas a dor de garganta não passava. Geovani falou na sacanagem: poisé, a vida é sonho, mas a realidade dá umas marteladas. Nós rimos, dei uma pigarreada. Bateu aquela dorzinha aguda entre o ouvido e a mandíbula.
Ainda no Rio, o Ícaro fez pra mim um suco com couve, maçã, gengibre e outras frutas que ele não queria deixar apodrecer na geladeira. Ícaro segue um dos princípios fundamentais religiosos que minha mãe ensinava: pecado, pecado mesmo, é o desperdício. Em nossa casa, por exemplo, nunca se jogou fora uma bisnaga de pasta de dente que não estivesse por inteiro seca pelas mil torções transmitidas estrategicamente de geração para geração.O suco estava bom. Acho que deu uma fortalecida. Também fiz a manutenção do bem-estar no própolis.
Depois da mesa na Primavera Literária, escrevi pro meu editor sobre ter sido pra mim um fortalecimento sentar ali com aquelas três escritoras pelas quais eu tenho profunda admiração e como aquilo parecia politicamente importante, porque esteticamente as cartas já estão dadas há muito tempo e são altas e boas.
Não há como o mercado editorial ignorar o projeto de escrevivências encampado pela Conceição já faz anos, os termos narrativos que a autora produziu em seus livros conectam o Brasil de forma umbilical as suas origens africanas pré-diaspóricas urgentes e reivindicam a fala dos povos subalternizados como força-motriz da ficção.
Eliana, em Água de Barrela, produz uma instigante travessia trans-histórica policial envolvendo a população negra carioca e os conflitos da opressão racial.
Teresa, no livro Cachorro Velho – que só consegui ler agora -, fala sobre escravidão em Cuba através de um jogo de cadência que oscila entre o assombro do terror e a beleza da metáfora que humaniza e faz das personagens escravizadas sensíveis protagonistas da História.
Voltei para São Paulo, ar-condicionado frio do ônibus. Minha garganta tornou a piorar.
Outro dia escrevi um texto para um projeto de teatro no qual surgiu uma personagem com um olho na garganta que tudo podia controlar. Vai ver que eu sou a tal e o olho está inflamado, doente, o olho vigilante com conjuntivite que não me deixa dormir.
Na segunda entregamos o manifesto do livro para os candidatos à presidência Haddad e Manuela, no TUCA.
O teatro apinhado de corpos, tinha gente saindo pelo ladrão. Emocionante ver as pessoas juntas cantando palavras de ordem contra o fascismo. Houve dois movimentos cênicos antes dos manifestos serem entregues. O primeiro foi uma poesia/performance da Luiza Romão sobre a origem brasileira patriarcal fascista. Depois uma luta de boxe insólita entre dois homens negros. Esse foi o momento que mais me marcou. Aysha Nascimento fazia parte do grupo de intérpretes negros, ela tomou o microfone e disse à plenária majoritariamente branca: parem de nos matar!
Que o apelo seja ouvido, não é a primeira vez que alguém o faz.
Saí no meio do ato. Tinha hora pra voltar pra casa. Peguei o ônibus na Cardoso de Almeida e desci um ponto antes para aproveitar a padaria ainda aberta. Comprei o pão de amanhã, umas gramas de queijo prato. Um casal atrás de mim olhava a televisão acesa passando as notícias. Bolsonaro pedia desculpas pelo erro do filho, chamou-o de menino, infantilizando também a gravidade das declarações dadas sobre a dissolução do Supremo Tribunal Federal.
Eu comentei que esses homens acham que política é brincadeira. A mulher disse que os dois candidatos à presidência são terríveis. Era boliviana, claramente indígena, o homem também. Eu falei que entre um fascista e um professor eu não tinha dúvidas para quem daria meu voto. Fez cara de desconfiança. Tentei lhe explicar sobre as mentiras contadas por Bolsonaro. Falei. Falei. Falei. Ela permaneceu calada. Só abriu a boca para pedir que eu lhe pagasse um salgado, porque tinham fome, ela e o marido. Paguei. Agradeceu, desejou-me boas coisas. Nos despedimos num boa noite rápido.
Frio. Latejou a dor na garganta, uma dor sem nome. Pode ser um grito estancado por entre as cordas vocais, pode ser o soluço residual de um choro que se engoliu, pode ser o silêncio por onde morrem as palavras. Tudo isso, tudo o que não sei e passo não sabendo, de um indizível ao outro.
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