Os domingos no T1 eram quase sempre iguais. Nossa mãe nos apanhava na casa do pai de carro e seguíamos pela avenida Júlio César até a entradinha de mata onde ficava o clube. Era um tanto de árvore que não acabava mais e tinha bicho, diziam até que às vezes aparecia onça por lá. Eu mesma nunca tinha visto uma. Os gansos eu via, andavam sempre em fila e os adultos nos apavoravam dizendo que eles tinham uma fome danada de olhos de criança por isso não era bom se aproximar muito.
Depois que eu mudei pra escola particular ouvi os meninos dizendo que o T1 era clube de pobre, o bom mesmo era a Assembleia Paraense. Pois uma vez eu fui à Assembleia Paraense com a família de uma amiguinha, naquele mesmo dia em que o pai dela passou a mão na minha coxa, e achei o clube uma merda.
Preferia o T1. O T1 conhecia de cabo a rabo. Em julho, eu e minha irmã ficávamos na colônia de férias, acordávamos muito cedinho e durante o dia inteiro fazíamos jogos, caçadas, brincadeiras, atividades na piscina. Tinha um final de semana em que todo mundo da colônia participava de um acampamento em barracas enormes, uns peritos ensinavam a gente o manual de sobrevivência na selva, aprendíamos a armar rede nos galhos das árvores, fazer fogueira, limpar picada de cobra e o nome dos códigos de resistência todos. Nós adorávamos e nossa mãe podia descansar da maternidade durante o período das férias. O pai dava alguma força, levava e trazia do T1, não esqueço até hoje o nome do ônibus que pegávamos: Marex – Felipe Patroni. Achava engraçado como ele dizia Marex. Também me abria de risada quando falava Brás-Brás que é o nome de uma loja que vende tudo lá no comércio. Tudo mesmo. De caneta bic a ovo de páscoa.
Naquelas tardes calorentas de Belém eu quase podia capturar com as mãos as palavras saindo da boca das pessoas às baforadas. O clima amazônico, naturalmente quente e úmido, fazia-nos ver miragens no deserto, ou visagens nas ruas mais apertadas da Cidade Velha. Eu dormia no chão na parte da tarde, sobre um tapete ou uma esteira. Outro dia estive no Rio de Janeiro e na casa onde fiquei tinha uma rede, entrei nela muito rapidamente em um momento em que fiquei sozinha para me derreter por aquela sensação boa de estar dentro da barriga de um embalo gostoso e solar. Pulei pra fora logo menos, dá vergonha ir se aninhando assim na rede dos outros sem autorização. O sol escaldante do Rio me lembra Belém. Um amigo meu do Rio foi pra Belém e disse que Belém lembra Bangu.
A piscina do T1 era duas, uma de pequenos outra de adultos. Quando minha irmã passou dos sete anos, nossa mãe deixou a gente nadar na grande. Era bom demais. Eu me lançava aos saltos toda passarinheira na fundura do forte cheiro de cloro.
Naquela manhã, fiquei muito magoada com minha irmã por ter me empurrado na água e maculado o primeiro mergulho do dia. Fiquei na borda chorando, respondia às insistências dos adultos para que eu não perdesse tempo em me divertir dizendo que esperaria meu cabelo secar e só dessa forma eu poderia perdoar o que ela me fizera, porque então seria como se não tivesse me molhado. Isso durou doze minutos. Depois viramos amigas novamente e disputamos quem chegaria primeiro ao outro lado. Nem lembro quem ganhou porque quando bati a mão na borda só o que pude ver foi aquele homem nos olhando num olhar amarelo e de riso terrível, movendo as mãos em ritmo compassado por dentro do calção de banho. Eu não pude entender direito o que aquilo significava, olhei para minha irmã e ela estava tão confusa e assustada quanto eu. Não havia mais ninguém na piscina e nossa mãe estava longe. O jeito que o homem nos fitava era mais aterrorizante do que todos os meus medos até então. Ele se interpunha entre nós e a escada do lado raso da piscina por onde seria mais fácil escapar.
Eu e minha irmã não falamos nada, em silêncio pegamos a mão uma da outra e começamos a dar braçadas de volta nos metros que havíamos acabado de realizar. A sensação que tive é que ele vinha atrás da gente então bati a perna com muita força, puxando minha irmã quando meu corpo ultrapassava o seu. Depois era eu quem era puxada. Já não estávamos de mãos dadas, havia qualquer coisa de invisível que nos fazia ficar na mesma frequência de velocidade e força. Quando chegamos à escada ela me empurrou para que eu subisse antes e lá de cima eu a ajudei a subir, as duas esbaforidas mas muito cuidadosas uma com a outra. Ali estavam nossos códigos de resistência aprendidos a duras penas através dos instintos cotidianos.
Nossa mãe, que sempre nos ensinou a não deixar ninguém encostar em nosso corpo sem permissão, esperava com a toalha na mão, sorrindo, feito um porto onde poderíamos enfim repousar. Corremos pra que ela nos secasse. As duas, as duas caladas, enfiadas numa seriedade madura e ainda assim tão meninas. Sem largar. Não sei se chegamos a contar o ocorrido pra mãe ou não. Acho que não, mas ela podia saber. Ela sabia.
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Ele se interpunha entre nós e a escada do lado raso da piscina por onde seria mais fácil escapar