A pedra avançou sobre o olho esquerdo de F, recortando o ar a cerca de 5 quilômetros por hora, no pico de velocidade que se deu progressivamente a partir do ato de lançamento pelo braço também esquerdo do jovem Caio, vizinho da menina, que se sentiu desafiado quando a ouviu falar: pedregulho nenhum pode me atingir.
F disse isso pulando de um lado para o outro com uma careta pregada no rosto, atrevida, como lhe era de praxe desde a época de suas primeiras horas na terra.
O impacto da pedra na região dos olhos causou uma dor aguda e o jorro de sangue. A mãe ficou desesperada, mas depois de limpar o rasgo na pálpebra, viu que a vista da menina estava preservada, de modo que todo o choro, toda a dor, todo o veneno eram súbitos borbotões de uma facada de desencanto. Desencantou-se F do escudo que a protegia da própria infância. Foi quando se percebeu, pela segunda ou terceira vez na vida, realmente ameaçada.
Com a mesma expressão de tristeza equilibrada nos dois olhos, muito pretos e intactos, F apareceu em minha casa novamente, tantos anos após bater a porta afirmando jamais voltar, para me fazer companhia depois que fiquei só.
Reclamou do barulho na construção ao lado e em seguida sentou-se no chão para, como disse, descansar as pernas. Apanhou o cinzeiro com uma mão e com a outra o livro que estou lendo de cabeceira. Acendeu um cigarro, leu alguns parágrafos do Piglia, riu quando eu disse que já não consigo devorar romances com tanta agilidade como em nossa adolescência, quando estávamos em constante estado de sede por livros, pela rua, pela carne e seus garotos. Conversamos ao longo da madrugada e antes de pegarmos no sono, à margem de um sol que já renascia no horizonte, ela me mostrou suas mãos marcadas pelas queimaduras e me perguntou se eu as achava tão feias quanto ela mesma achava. Eu beijei as duas, qual me banhasse de bênçãos, e não ousei falar mais nada.
Na manhã seguinte decidimos caminhar pela praia. Apanhamos bem cedinho um dos primeiros ônibus do dia e descemos numa das trilhas da estrada nova que leva direto para o mar. Poucas pessoas assentadas no véu de areia branca e nós, luzidias de uma alegria muito nossa que só vem de quando em quando, corremos para a beira d'água, como nos tempos em que éramos duas menininhas de roupas de banho em cores celestiais, adentrando mansas a beira dos igarapés, com os pés deslizando cuidadosamente para que sem querer não pisássemos em nenhuma arraia miúda.
Pedimos cerveja e uma porção de isca de peixe na única barraca aberta. Caminhamos até o Hotel Farol, onde fiquei hospedada na ocasião de minha primeira lua de mel. Ali, nos corredores do velho prédio colonial, podia desenhar com a memória a ossatura daquele casamento malfadado que F a sujeitou a condenações prévias e absolutamente imaturas, porque desde o primeiro momento morrera de ciúmes de eu me ir embora viver com outra mulher.
Ficamos na murada do Hotel que dava para a Ilha dos Amores, F tentou a todo custo me fazer largar o medo e seguir com ela pelo caminho das pedras para chegar à ilhota. Fiz recusa categórica e fiquei ali observando-a escapar e encaixar-se nos esquadros de minha visão, como uma fotografia em movimento, a escalar todo o limo frutificado por entre os dentes de corais. Caía, olhava-me, ria-se. Eu acenava de quando em quando para que possuísse a certeza de não estar abandonada e se sentisse acolhida por uma segurança vã, porque ilusória, mas robusta de boas intenções.
Agora era novamente F contra as pedras. Saltando, fazendo caretas, instigando a ira dos homens. Atravessando o mar parecia até uma sereia dessas que a gente não sabe como é, só imagina, tamanha a crosta de fúria ofuscante emanada de seus espinhos.
Um pontinho no meio da distância, F alcança os primeiros matagais da Ilha dos Amores. Dá pulos de alegria como se fosse o corpo vitorioso de uma maratona. Do lado daqui eu também vibro. F some pelas fendas insulares, de repente já não posso mais vê-la e, por um instante, tenho pra mim que se fundiu à paisagem e tornou-se a própria ilha. Penso muito rapidamente para não me deixar viciar em cantos de vingança: F é a pedra. Agora F é a pedra.
Marcílio Costa
Penso muito rapidamente para não me deixar viciar em cantos de vingança: F é a pedra. Agora F é a pedra