Eu estava na Ilha dos Amores quando pensei que bonito que foi aquele desejo de infância de um dia chamar-me astronauta para os outros e para mim mesma. Acontece que me comovia imaginar o Cometa Halley que minha mãe sempre lembrava lá do ano de 1986, dizia que ele só seria visto uma vez mais num futuro providencialmente distante onde ela já não poderia estar, já teria se ido da terra, como todas as criaturas enervadas de mortalidade. Não falava isso com dor, muito pelo contrário, manifestava certo encantamento no modo de comentar o assunto, parecia maravilhada com o fato de um corpo celeste poder durar tanto tempo, ou transgredir sem modéstia os efeitos da morte permanecendo aceso ainda que sem existir. Esse gosto pelas coisas que não estão mais eu herdei dela. Também o exercício de olhar para o firmamento e perceber quão pequenina é minha aventura nessa terra e como toda a grandiosidade da paisagem me basta.
Lá em São Thomé das Letras nós subimos uma enorme montanha em formato de pirâmide onde os moradores da região diziam aportarem espaçonaves. Cada passo para cima me faz tremer de medo, a distância do fundo da terra é apavorante, dá um frio na espinha o pensamento de que de repente, por causa de uma pedra que é mais lisa, podemos escorregar e cair lá embaixo, sem rede de proteção. Mas reuni coragem e escalei com a Mariana e a Julia, nessa época a gente fazia tudo em três e foi nesse número, sem baixas, que chegamos ao alto.
O céu estrelado, limpo, azul escuro, aquela infinidade de céu. Aquela infinidade de céu. Parecia um manto sagrado sobre a pele do mundo. Eu olhei as estrelas e desconfiei que elas estivessem olhando de volta, como num flerte, mas um tanto diferente do flerte dessas noitadas que já não aguento mais. Um flerte de luz. Uma senda no espaço clareando a escuridão da noite que se acomoda em todos os cantos da vista. Ali, minhas estrelas em outro tempo, quebram o corpo retilíneo do antes, do agora e do depois. Queimam calendários, a ciranda dos séculos, a estúpida regulação das horas por onde escorre a espera. Tanto faz. A partir de agora fica combinado que do amanhã só importam as manhãs.
Eu via na televisão os filmes de viagens intergaláticas e imaginava o momento em que eu seria a capitã de um foguete, com meu capacete de lanterna, uma roupa vermelha, me atracaria na anti-gravidade para realizar o sonho de voar.
Um dia saquei uma das fotografias mais lindas do cosmos. Aquele silêncio grande emanado por uma imagem, uma imagem tão simples. Um astronauta e seu grande amor: o espaço. Só os dois. Um deslocamento lento, quase dança gasosa, pelas trilhas do vazio inexplorado. Maria me perguntou por que eu estava tão séria diante da fotografia na revista folheada enquanto aguardávamos nossa vez no atendimento ginecológico, eu não soube responder mas senti como se conhecesse aquele lugar, como se a paisagem ali retratada, o alvo onde todos tentaram cravar os dentes nas corridas da fria guerra entre União Soviética e Estados Unidos, as bandeiras estocadas no coração da lua, a colonização do planeta Marte, fosse também meu endereço, numa época passada onde eu fui morar, quando não era mais que uma nuvem de poeira, pó de estrela, ventania que cega os olhos dos viajantes desavisados cruzando o deserto.
Agora alguns têm dito que o planeta Terra é plano. Houve isso em nosso país, instaurou-se a Idade Média como projeto de avanço político. Eu vou enviar essa carta pra você que me lê no futuro depois me contar o que foi feito, não de nós, não de mim, mas do céu. Terá virado uma chapa uniforme e pouco vascularizada de acordo com o desejo dos progressistas medievais? Ou nos surpreenderá com uma forma ainda não imaginada pelos astrônomos? Terá margens oblíquas junto a um par de açaizeiros onde ataremos nossas redes coloridas para dormir e sonhar sonhos de astros cadentes?
Minha curiosidade vai ser enorme, eu aguardo nosso encontro. Você procure subir a montanha em forma de pirâmide em São Thomé das Letras, de preferência em boa companhia. Não há o que temer, a vontade de ver é maior do que braços e pernas desengonçados (se você for manco igual a mim, tente não pensar nisso, chega de romantismo!). Quando estiver numa parte suficientemente alta para olhar a bruma estrelar procure por mim, eu sei que vou estar lá em cima, numa aventura pequenina, docemente irrelevante, calma, mas desse meu jeito que todos conhecem: ávida, esfomeada, por notícias de casa.
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Lá em São Thomé das Letras nós subimos uma enorme montanha em formato de pirâmide onde os moradores da região diziam aportarem espaçonaves