Começo de semestre, estantes de livros já arrumadas. Arrumadas… como? Livro enfileirados por sobrenome de autor? Pelo título…? Nada disso: pela disciplina na qual entram ou podem entrar. Entre estes, e para um curso novo de literatura, a bem vinda nova edição de A personagem (Ed. Contexto) de Beth Brait. Livro é maneiro por várias razões
Uma delas é que seu tema interessa a muita gente: leitores, frequentadores de cinema e de teatro, jogadores de games, telespectadores… Outra é que é muito claro, bem escrito, e até divertido. E, finalmente, porque de suas 170 páginas, quase 70 são dedicadas a depoimentos de escritores brasileiros que contam como criam suas personagens, respondendo à pergunta que reponta na língua de todo leitor/espectador apaixonado pelas historias que lê e a que assiste. “Caramba! De onde é que esse cara tira suas personagens? Da imaginação? Da vida real?”.
Os 26 escritores que abrem sua oficina para os leitores de Beth Brait dão concretude à discussão teórica dos capítulos iniciais do livro. E, num certo sentido, ao contarem como criam personagens, parece que os escritores tornam-se personagens . Personagens de sua própria história mas, assim mesmo, personagens. Talvez ao longo das mais de 2 dúzias de respostas à pergunta que Beth Brait recolhe dos leitores: “De onde vem estes seres?“ se encontrem criaturas às vezes tão perplexas quanto os leitores de suas historias… Será ?
Dizem eles, talvez às vezes (acho…) piscando o olho: “…aparecem quando menos os esperamos…”, “…a parte mais polpuda e suculenta dos nossos personagens vêm de nossa imaginação de nossa capacidade de inventar…”, “…vêm de nós, de algum lugar de nós, mas de onde?…“, “…do dia a dia. De um encontro casual na rua. De uma foto ou notícia de jornal…”, “…é da vida que sugo meus personagens”.
E por aí vai… surpresa atrás de surpresa, delícia atrás de delicia: “Ah! Então foi assim que nasceu este carinha que não me deixou dormir até acabar a sua história no sertão de Minas…!? “Poxa, e eu que achava – tinham me dito – que a heroína da história tinha sido inspirada numa amiga da autora…!”.
É neste mundo que se move delicadamente entre a observação e a imaginação que se criam as personagens que percorrem narrativas, e de cuja estrutura e componentes tratam os 3 capítulos que antecedem o depoimento dos escritores.
Editado pela primeira vez em 1985, os 30 e poucos anos que separam a primeira edição desta lançada agora foram fecundos para os estudos literários, o que exigiu da autora uma bem-vinda (e paciente) atualização de certas passagens. Encarando o desafio da (re)escritura, Beth Brait teve a sabedoria (e a competência) de manter a coloquialidade, a clareza da primeira edição que, integrando uma coleção intitulada Princípios já proscrevia, a partir de seu título, redação empedrada e voos (pseudo) teóricos obscuros.
No primeiro capitulo, “O faz de conta das personagens”, a discussão focaliza o múltiplo estatuto da personagem: basicamente uma figura de papel/tela/tinta – entre a imaginação do escritor e a do leitor, esgueiram – se às vezes, imagens de figuras de carne e osso, e todas elas passam a habitar a memória e a fantasia de quem as conheceu em livros, filmes, peças de teatro, games & similares narrativas.
Ao longo do livro, Beth Brait solicita a participação do leitor quer nas análises, quer na hipóteses que levanta, indicando itinerários, muitos no mundo digital, quando acervos de museus e de bibliotecas estão disponíveis a um toque de dedo.
O segundo capítulo, “A personagem e a tradição critica “ – penso – tem grande interesse para profissionais, patrocinando uma viagem de Aristóteles ao final do século XX. Em suas páginas, o leitor encontra vozes mais antigas e mais contemporâneas que se debruçaram sobre a personagem.
E, muito embora quase todas estas vozes sejam estrangeiras e tenham formulado suas hipóteses e teorias a partir de obras igualmente estrangeiras, Beth Brait tem o cuidado de ilustrar teorias e hipóteses com autores brasileiros: dos clássicos Alencar e Aluísio Azevedo, aos contemporâneos Ivan Ângelo e Bernardo Kucinsnki, ao lado de Batman, Sherlock Holmes, foto e telenovelas.
Segue-se o capítulo “A construção da personagem” que se debruça sobre procedimentos de construção das personagens, o que acaba tendo peso na classificação de obras narrativas: Romance policial? Biografia? Romance psicológico? História contada por alguém que participa dela ou por um “outsider”?
A discussão se desenrola ancorada em comentários a distintas obras de distintos gêneros, incluindo best-sellers como O nome da rosa, ou as deliciosas histórias de Garcia-Roza e Dalton Trevisan.
O livro ganha uma dimensão interessante (e muito rara em obras de origem acadêmica) representada, por um lado, pela conversa da autora com seus leitores, a quem sugere leituras e delega tarefas. De outra, nas passagens em que a autora relativiza suas afirmações, o que, além de indicar modéstia, parece nos apresentar uma estudiosa da linguagem plena (e felizmente!) consciente da limitação da linguagem para falar… da linguagem !
Mais um ponto para o livro! Obra, sem dúvida, cheia de sugestões para bate-papos e aulas de literatura. Como as do curso que início esta semana.
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É neste mundo que se move delicadamente entre a observação e a imaginação que se criam as personagens que percorrem narrativas