É estúpido aquele que não vê a barbárie batendo na sua porta.
Ontem, na hora da chuva forte, eu tava caminhando para o trabalho e encontrei um rapaz que mora nas ruas e é assíduo frequentador da biblioteca, nos pés meia e chinelo.
– Cadê seu tênis, maluco?
– Roubaram na madrugada, tinha molhado, tirei pra secar e dormi, acordei sem tênis.
Ele ainda conseguiu sorrir da própria tragédia e me veio na cabeça a frase escarnecente “melhor o tênis que a vida”, óbvio que não falei, tentei ser solidário.
Na volta do almoço levei um tênis muito usado, mas ainda decente, e dei pra ele. Os poucos dentes sorriram:
– Vou dormir calçado ou enfiar na mochila.
Larry Vincent/FlickrCC
Quando falo em tragédia, não penso apenas no velho tênis colorido. Quem rouba um rapaz que vive nas ruas na madrugada?
Quando falo em tragédia, não penso apenas no velho tênis colorido. Quem rouba um rapaz que vive nas ruas na madrugada? Alguém que esteja em pior condição ou um canalha.
Mal fadado ou canalha, autofagia ou perversão, a guerra das ruas já está virando o fio faz tempo, sem as regras tácitas e os ritos necessários para o mínimo de convivência. O rio quando transborda inunda, a violência quando extrapola aumenta o número de alvos, o medo do outro ganha tentáculos.
Foi ontem também que soube por aqui que um menino foi açoitado por ter roubado um chocolate. Não quis saber as circunstâncias, nem ver o vídeo. Fiquei de longe ouvindo os ecos, aplausos, lamentos, gritos de horror, a indignação, o escárnio.
O espetáculo debordiano que esgota e super expõe a tragédia, transformando-a numa coisa em si. Se transforma em meme ou desaparece, enquanto as feridas permanecem sangrando no corpo do menino.
Chocolate ou tênis, frio, sangue ou humilhação. Pé descalço ou corpo açoitado, todos são irmãos do abandono. A barbárie nos visita, educadamente bate em nossa porta. Quando ela de vez entrar, não saberemos quem ela é e quem somos nós.