Inveja é como dor de barriga: acontece com qualquer mortal. Todo mundo já sentiu e vai continuar sentindo, ainda bem. Incomoda, é claro, mas a gente tem que aprender a administrá-la. O primeiro passo é admiti-la, mas nem todos conseguem; principalmente os mais orgulhosos.
Costumo dizer que uma dose de humildade na veia é um santo remédio para a rejeição e também para a inveja.
Se não deixarmos o orgulho se meter no desconforto causado pelo sentimento de inveja, este sentimento se modifica, se transforma em admiração!
Tive uma infância muito gostosa. Sou do tempo em que a gente brincava na rua e os nossos pais não se preocupavam.
A minha turma era composta pelo Zezé, Hamilton, Miltinho, Rubinho, Ronaldo e outros moleques, todos vizinhos da mesma rua, no bairro da Bela Vista em São Paulo.
A gente se reunia para brincar na vilinha, uma travessa da Rua Abolição onde morávamos, porque lá não passava carro e, então, podíamos brincar à vontade e, principalmente, jogar bola sem um tempo determinado para terminar, porque geralmente era assim o combinado: vira cinco e dez acaba!
Era uma delícia, e o jogo só era interrompido quando a bola caía no jardim das casas de algumas senhoras mais estressadas.
Dona Itália era uma delas! Sim, isso mesmo, esse era o nome dela. De vez em quando ela ficava furiosa e saía na janela gritando: “Parem com essa jogatina, se essa bola cair mais uma vez aqui na minha casa eu chamo a Rádio Patrulha!”
Eu não sei a quem temia mais: a Rádio Patrulha ou a dona Itália. Pasmem!
Estou falando do final dos anos 1950, onde o maior ídolo do futebol apareceu: Pelé!
Todo menino pretinho que jogava bola era chamado de Pelé. E eu era o único da minha turma que poderia ostentar esse apelido, e com muito orgulho.
Nunca joguei bola bem, era grosso, mas quando alguns rapazes assistiam a nossa pelada eles gritavam: “Passe a bola pro Pelé!” E eu me sentia um astro, gostava de palco desde aquela época.
Mas a alegria durou pouco, porque se juntou à turma um outro Pelé, o meu primo José Roberto, que se mudara de Santana para a Bela Vista, para o meu desespero!
Sempre me dei bem com ele, mas morria de inveja, porque ele era simplesmente um craque!
Todo mundo queria o Zé Roberto para o seu time e eu era sempre preterido, ficava na reserva.
Agora a galera gritava: “Passe a bola pro Pelé”. E o pior: esse novo Pelé fazia muitos gols. Detalhe: Não me lembro de ter feito algum gol!
Era dolorida essa mudança rápida de cenário, às vezes chegava a chorar de raiva, ou melhor, de inveja.
Mas graças a Deus os meus sentimentos mudaram, porque passei a admirar o talento do meu primo e a sentir orgulho por tabela.
Os anos passaram rapidamente e perdi o contato com a maioria dos meus amiguinhos de infância. Recuperei alguns através do Facebook! Até mesmo o Zé Roberto, que fiquei muitos anos sem vê-lo. Só o encontrei recentemente no lançamento de um dos meus livros e foi então que, depois de mais de 50 anos, lhe confessei a inveja que sentia do seu talento.
Ele sorriu e me disse: “Você tinha inveja do meu futebol, e eu tinha inveja porque você sabia tocar piano!”
O Zé Roberto até hoje bate uma bola nos finais de semana e eu continuo arranhando no meu piano.
(*) Jovelino Clemente Filho é psicanalista e escritor. É autor de Nuances da Alma, Covarde Desejo, Zoraide e Parricídio.
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