Quando isso terminar a gente vai fazer uma festa junina, mesmo que seja setembro. Setembro é um mês triste pra mim, porque foi quando minha mãe morreu, mas fosse pra ressurgir dessas cinzas, eu até aceitava a ressignificação de setembro, um levante no calendário gregoriano, setembro a virar recomeço de tudo, prece fundante da inauguração do mundo, santuário do novo, berço do início.
Posso repetir essas palavras quinhentas mil vezes para me convencer de que tudo acabará bem, muito bem, como sempre foi mas… e se isso não for passível de forjar na linguagem literária?
Por isso voltei a escrever. Quer dizer, escrever, escrevo sempre, mas por isso voltei a publicar ou passar dos termos pessoais da escrita em meus diários e caderninhos de anotação para o andar do compartilhamento público, feito fosse de guindaste a subida dos textos para esse universo virtual em desencanto.
Tive medo de não poder escrever mais, ficar doente, sei lá, incapacitada. Fiquei sabendo hoje da morte de Naomi Munakata, uma das mais importantes regentes do país. Bateu uma tristeza, essa sensação de proximidade quando a gente sabe bem de quem se trata essa gente que esvanece. Eu assisti a uma regência de Munakata no final do ano passado, na Pinacoteca, num domingo pela manhã. Foi tudo muito bonito, eu fiquei impressionada com aquela situação.
Em que pese as inflamadas indicações de minha mãe para que eu e minha irmã frequentássemos a programação da Pinacoteca e do Theatro Municipal de São Paulo, nunca havia comparecido de fato a nenhum recital ou desnorteio semelhante. Quem me levou foi minha companheira, a gente deixou de ir ver a Camilinha tocar cavaquinho na orquestra da Unesp para ir na Pinacoteca. Depois me senti culpada e mandei dizer por mensagem pra Camilinha que ainda ia fazer de tudo para ver ao vivo aquela música linda que ela havia postado nas redes sociais, aquele solo de cavaquinho junto com violino, violoncelo, flauta transversal, xilofone.
A Camilinha não tem nem 25 anos e já é uma ás do cavaquinho, uma das jovens amigas que vieram morar em minha vida. Cruel pensar que por ser jovem eu posso adiar Camilinha em nome da experiência de troca com uma amizade mais velha.
Não posso adiar Camilinha, não posso adiar ninguém, e me mantenho isolada para que todos, amizades velhas e novas, possam sobreviver ao vírus.
Quanto aos mais velhos, sempre gostei num profundo de amar gente que já existia antes de mim no mundo, não à toa, com dezessete anos, comecei a namorar uma moça que tinha quase trinta a mais do que eu. Aquilo pra mim era uma alegria, como se me encaixasse toda ali, por inteiro, naquele espaço do tempo que não me cabia, desviando de mim mesma em minha meninice.
Depois, fiz amizade com o Luís Octávio que morreu com quase setenta quando eu tinha dezenove. Levei Juliana e Caio à casa onde residia, pensão da dona Celois, para pegar para mim os livros que me havia prometido antes que seu irmão os doassem para as instituições públicas.
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Tive medo de não poder escrever mais, ficar doente, sei lá, incapacitada
Em casa, enquanto folheava os inúmeros volumes, chorei sozinha a falta de meu amigo em São Paulo.
Depois veio Monique Soumére na França, quando eu estava me separando. Ela contava a idade de meu pai e me acompanhou durante dois dias pelas ruas de seu bem querer em Paris. Estacionamos em frente a um restaurante com imensa propaganda holográfica da Gucci e ela apontou dizendo: aqui o café que Simone de Beauvoir costumava frequentar.
Quando Monique me chamou para comer em sua casa, no dia seguinte ao café de Simone, eu fiquei nervosa, acordei antes da hora, me preparei toda para não fazer feio. Ela cozinhou uns ovos e preparou uma salada verde com abacate porque era mais barato. Eu lhe dei de presente um livro de Rilke e essa situação, muito depois, virou um conto do meu primeiro livro.
O que está no conto, exatamente, é a minha timidez em oferecer um presente tão tacitamente previsível para uma mulher de sessenta e quatro anos. O que não está no conto foi o fato de eu achar Monique Soumére de extrema elegância enquanto fazia o cozimento dos ovos que iríamos almoçar, lembro-me de agradecer por dentro, em silêncio, o fato de ter sido tão bem acolhida em um país que a princípio não estava em meus planos de visitação, encontrar Monique foi de verdade uma sorte.
Nós nos despedimos no metrô do Boulevard Voltaire onde ela morava ao lado da amiga, Jaque, que me oferecera através dos pedidos de minha irmã, uma hospedagem.
Foi ao fim do dia quatro, eu regressaria a Portugal e depois ao Brasil, Monique me conduziu ainda falando sobre as ruas e sua história, as desavenças com a mudança, o pesar do progresso. Depois só nos abraçamos e ela disse que quando viesse ao Brasil me avisaria. Isso nunca aconteceu, faz quase dez anos que espero esse aviso.
Meu coração nesse momento desidrata ao estado de pedra e fico trêmula, porque tenho verdadeiro bem querer por meu povo todo que chegou nesse mundo décadas antes. Não quero que as pessoas morram.
Não quero que a tosse da Nanci, que nos adotou depois da morte de minha mãe, seja indício de infecção pelo vírus.
O vírus
Essa ideia enigmática. Esse ser vivo que vai nos dizimar a todos pelos pulmões. Que valeria lutar contra o que já está escrito? Capitalismo, exploração, opressão, mercantilização dos corpos… Toda teoria se aplica formidável a este apelo da história humana… Qual seria o acaso a nos brindar com seus milagres?
Mas não largo disso que é fé e memória. A fé pela formação que sempre tive e que foi responsável por meus mais largos movimentos de sobrevivência, e a memória porque a memória é sempre a verdade esgarçada em suas tramas mais complexas.
Vou no esteio da memória agradecendo ao tempo que me antecede e produzindo as palavras que me prefiguram.
Já perdi tanta gente, tenho tanto medo. Mas só perdi tanta gente porque tive tanta gente no ninho, e a coletividade para mim sempre foi um moer da morte, a máquina de estar viva.
É nesse rastro que me alongo e me faço durar, aqui, ao leitor. Querendo de firmeza que essa nossa prosa seja soro de alma e vigor, pelo menos por agora – que é por agora e sempre. Sinto falta de Monique, de Luís, sinto falta de Camilinha.