Com muito pouco você
apoia a mídia independente
Opera Mundi
Opera Mundi APOIE
  • Política e Economia
  • Diplomacia
  • Análise
  • Opinião
  • Coronavírus
  • Vídeos
  • Podcasts
Crônica

Descampado real

Encaminhar Enviar por e-mail

Me sinto um pouco como Woyzeck, prestando atenção em sonoridades tétricas enquanto observava o meu descampado de todos os dias

Paloma Franca Amorim

São Paulo (Brasil)
2021-01-09T14:30:00.000Z

Receba nossas notícias e novidades em primeira mão!

Woyzeck é uma peça episódica escrita no século XIX pelo alemão Georg Büchner. Largamente estudada na Academia, parece não marcar tanta presença nos debates sobre teatro popular brasileiro, ainda que a personagem principal, Woyzeck, corresponda a um certo tipo de trabalhador brasileiro previsto em filmes do Cinema Novo, um cidadão subalternizado e profundamente influenciado pelos poderes responsáveis por sua espoliação. Woyzeck ora parece por completo alheio ao processo que o massacra, ora apresenta certa consciência de si e do contexto.

Na cena do descampado, que podemos considerar como um dos movimentos iniciais da peça (posto que o texto é feito um quadro de armar no qual as cenas contêm certa autonomia, podendo trocar de posição sem necessariamente comprometer o todo dramático), Woyzeck avisa ao amigo Andres que tem ouvido sonoridades esquisitas. Em minha interpretação, essas sonoridades transcendem o aspecto da matéria e expressam uma forma de augúrio, como enunciassem não a chegada de alguém, mas a chegada de um tempo outro, de um espírito do tempo outro.

Meio amalucado. É assim que Woyzeck já se apresenta no princípio da trama, por isso nas outras cenas não parece receber a confiança nem de Andres nem dos demais interlocutores.

Outro dia, num dia desses qualquer, eu me senti um pouco como Woyzeck, prestando atenção em sonoridades tétricas enquanto observava o meu descampado de todos os dias: essa tela azul e branca na qual inserimos mensagens, imagens, vídeos vazados de algum ser insuspeito, influenciadores digitais sem pernas, sem extensão corpórea, simulações de fraturas, de abraços, de calores, botões emocionais.

Aqui, nesse descampado de todos os dias, eu descobri, não cabe a distância, afinal a velocidade de nossos impetuosos cliques virtuais serve para encurtar os longes, talhando-os de dentro para fora, ao meio, ou pela metade.

Aqui, nesse descampado, a morte é impossível. Toda vez que há a morte algo se inverte nas regras existenciais e o fim sofre arbitrária correção e se refaz alucinadamente como um reinício de tudo. E por causa dessas constatações aclimatadas num frio de alma sem fome, porque tenho andado desse jeito, com a alma sem fome, pude descobrir que eu preciso danadamente da distância e da morte, preciso da percepção de que amizades, amores, irmandades acabam fora daqui e o que insiste em fazê-las perdurarem nesse espaço é a mesma sutil e sarcástica operação que mantém uma estrela brilhante mesmo depois que ela deixa de existir, de modo a nos manter engajados em sua apreciação.

Wikimedia Commons
Só isso, o descampado real, aquele mesmo, o terrível: é esse mesmo que eu quero

Não, não estou comparando uma estrela ao universo em cliques onde nos metemos, humanidade, sem desconfiar que cada nicho de mercado tratava-se na realidade de um dos tantos porões e trancafiados que estamos, sob senhas de nossas posses, que nós escolhemos, alfanuméricas ou de ostentação memorial - a data de aniversário de um antigo namorado, a combinação de palavras preferidas reveláveis apenas através da combinação das teclas do computador. Insira seu login e sua senha, abre-te Sésamo, cala-te boca.

Afinal, não, não estou comparando uma estrela ao universo em cliques onde nos metemos. Há horizontes tardios, por exemplo, que também operam como as estrelas mortas, permanecem brilhantes em nossos pensamentos mesmo depois de sua partida.

O que estou dizendo, na verdade, nessa confusão woyzeckiana facilmente quebrável quando da aparição de qualquer argumento mais tenro e sociológico sobre a importância da comunicabilidade das redes sociais em tempos de pandemia, é que eu, pequena que sou, ainda preciso dessas coisas que vieram comigo, eu me sendo analógica: preciso chorar minhas perdas, as pessoas que partiram, as pessoas que quiseram ir, as pessoas que eu tive de mandar embora, preciso poder não lembrar e me esvaziar das memórias que uma máquina resolveu computar a meu respeito. Preciso me dar conta da distância e saborear com zelo a solidão. Preciso tecer as memórias que nem sei. Preciso pensar com a minha cabeça.

Preciso levantar os olhos e sair do descampado em busca do outro descampado, um pouco menos azul, um pouco menos previsível, árido, ressecado, solo infértil e fraco que de vez em vento recebe uma nuvem escassa carregada de chuvas, chuvas duras, chuvas de pingo pesado. Chuvas que fazem nascer no descampado um fiapo de verde, um cabo de planta, uma planta de difícil colheita, uma planta que não vinga. Um descampado que não vinga, mas fora desse daqui, longe desse daqui, morto sim, talvez, distante sim, mas um descampado real, com erre maiúsculo. É isso que eu quero. O descampado real. Só isso, o descampado real, aquele mesmo, o terrível: é esse mesmo que eu quero.

Você que chegou até aqui e que acredita em uma mídia autônoma e comprometida com a verdade: precisamos da sua contribuição. A informação deve ser livre e acessível para todos, mas produzi-la com qualidade tem um custo, que é bancado essencialmente por nossos assinantes solidários. Escolha a melhor forma de você contribuir com nosso projeto jornalístico, que olha ao mundo a partir da América Latina e do Brasil.

Contra as fake news, o jornalismo de qualidade é a melhor vacina!

Faça uma
assinatura mensal
Faça uma
assinatura anual
Faça uma
contribuição única

Opera Mundi foi criado em 2008. É mais de uma década de cobertura do cenário político internacional, numa perspectiva brasileira e única. Só o apoio dos internautas nos permite sobreviver e expandir o projeto. Obrigado.

Eu apoio Opera Mundi
Política e Economia

Argentina promulga lei que regula cannabis medicinal e cânhamo industrial

Encaminhar Enviar por e-mail

'Um triunfo da sociedade contra a hipocrisia', assegurou o presidente Alberto Fernández sobre a nova legislação

Fernanda Paixão

Brasil de Fato Brasil de Fato

Buenos Aires (Argentina)
2022-05-27T21:20:00.000Z

Receba nossas notícias e novidades em primeira mão!

Nesta sexta-feira (27/05), o governo argentino promulgou oficialmente a lei 27.669 que regulariza a cannabis medicinal e o cânhamo industrial no país, conforme publicado no Boletim Oficial. A nova legislação estabelece a criação da Agência Reguladora da Indústria do Cânhamo e da Cannabis Medicinal (Ariccame) e será responsável por "regulamentar, controlar e emitir as autorizações administrativas com respeito ao uso de sementes da planta de cannabis, da cannabis e seus produtos derivados".

A Lei do Marco Regulatório para o Desenvolvimento da Indústria da Cannabis Medicinal e o Cânhamo Industrial também prevê a criação do Conselho Federal para o Desenvolvimento da Indústria do Cânhamo e Cannabis Medicinal, que contará com um representante do governo nacional e um por cada província do país. O já existente Instituto Nacional de Sementes (Inase) ditará as normas complementares.

"Este é um passo para o acesso ao direito à saúde", alegou o presidente Alberto Fernández durante o ato de promulgação da lei na última terça-feira (24/05) na Casa Rosada, sede do governo argentino. "Começamos a escutar as mães que, com a cannabis, faziam com que seus filhos pudessem ter uma vida melhor. Começamos a prestar atenção e hoje estamos ganhando uma batalha contra a hipocrisia", disse o mandatário.

"Por trás dessa lei, há uma indústria que produz, que dá trabalho, que trará dólares mas que, fundamentalmente, cure", agregou o presidente.

Também presente na cerimônia, o ministro de Ciência e Tecnologia, Daniel Filmus, ressaltou que a lei representa uma alternativa produtiva, e estima que levará à criação de pelo menos 10 mil postos de trabalho em três anos.

Twitter/Alberto Fernández
'Este é um passo para o acesso ao direito à saúde', alegou o presidente Alberto Fernández

Luta das mães contra o tabu da cannabis

O projeto de lei foi aprovado no dia 5 de maio na Câmara dos Deputados, com 155 votos a favor e apenas 56 contra. O projeto define um marco legal para o investimento público e privado em toda a cadeia da cannabis medicinal e do cânhamo industrial.

A conquista de uma lei para regularizar o uso medicinal da maconha foi resultado da luta de mães cujos filhos padecem alguma doença tratável com cannabis. Diante do tabu e da penalização sobre o cultivo e o uso da maconha, essas mães conformaram uma rede de troca de conhecimentos e produtos para o tratamento de seus filhos. A organização Mamá Cultiva esteve na linha de frente dessa militância.

O cânhamo, apesar de altamente estratégico industrialmente, também padece do tabu por ser também uma planta da família Cannabis. Neste caso, consiste em uma variedade da planta, a espécie Cannabis ruderalis, cujas fibras possuem alto valor industrial, sendo matéria-prima sustentável para a produção têxtil, como algodão, de alimentos, remédios, produtos de beleza e óleos.

Você que chegou até aqui e que acredita em uma mídia autônoma e comprometida com a verdade: precisamos da sua contribuição. A informação deve ser livre e acessível para todos, mas produzi-la com qualidade tem um custo, que é bancado essencialmente por nossos assinantes solidários. Escolha a melhor forma de você contribuir com nosso projeto jornalístico, que olha ao mundo a partir da América Latina e do Brasil.

Contra as fake news, o jornalismo de qualidade é a melhor vacina!

Faça uma
assinatura mensal
Faça uma
assinatura anual
Faça uma
contribuição única

Opera Mundi foi criado em 2008. É mais de uma década de cobertura do cenário político internacional, numa perspectiva brasileira e única. Só o apoio dos internautas nos permite sobreviver e expandir o projeto. Obrigado.

Eu apoio Opera Mundi
Receba nossas notícias e novidades em primeira mão!
Opera Mundi

Endereço: Avenida Paulista, nº 1842, TORRE NORTE CONJ 155 – 15º andar São Paulo - SP
CNPJ: 07.041.081.0001-17
Telefone: (11) 4118-6591

  • Contato
  • Política e Economia
  • Diplomacia
  • Análise
  • Opinião
  • Coronavírus
  • Vídeos
  • Expediente
  • Política de privacidade
Siga-nos
  • YouTube
  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram
  • Google News
  • RSS
Blogs
  • Breno Altman
  • Agora
  • Bidê
  • Blog do Piva
  • Quebrando Muros
Receba nossas publicações
Receba nossas notícias e novidades em primeira mão!

© 2018 ArpaDesign | Todos os direitos reservados