A noite de sexta foi escura em cima e nos baixios do Elevado João Goulart. Literalmente escura, sem eufemismos. A energia elétrica acabou no final da tarde tornando a noite mais escura, caprichosamente no cimo e nos baixios do Elevado, já que o entorno permaneceu iluminado. Mas a escuridão começou mais cedo, no início da tarde, quando a luz do dia ainda conseguia disfarçar o período de trevas.
Ontem o rapa limpa miséria da prefeitura municipal passou. São rapazes com coletes escoltados por guardas municipais e jatos d’água na retaguarda. O objetivo é tirar tudo que possa transformar a vida de quem mora nas ruas menos dura. Colchão, barraca, cobertor, mochila. O chão das ruas é varrido com o objetivo de eliminar o produto mais bem acabado do neoliberalismo: a miséria e os miseráveis da rua.
Não, não é novidade o rapa da miséria, ele é uma política pública longeva aplicada nas ruas sob alcunha de “operação administrativa”. Há desculpas e discursos prontos para justificá-lo – dizem que é estímulo para que os moradores vão para os albergues, que na prática são inóspitos, e nem possuem vagas suficientes para a quantidade de gente que as ruas – o resumo é que a prefeitura quer mesmo é fazer desaparecer o fruto indesejado do seu projeto político.
Segundo dados oficiais da própria prefeitura de São Paulo, entre 2015 e o ano passado (2020), a população de rua cresceu 53% em São Paulo, somando 24,3 mil pessoas. A última coleta parcial desses dados foi contestada pelos próprios recenseadores, que afirmaram os números coletados foram subestimados e houveram muitas omissões.
Para quem vive no centro, a discrepância dos números oficiais é obvia. Basta olhar nas ruas. Famílias inteiras vagando, crianças sozinhas ou em grupos se virando como podem, os idosos, os alcoólatras, o povo do crack, as trans, os trecheiros nômades, catadores. Alguns deles que vivem no híbrido, entre as ruas e alguma moradia precária.
É triste o cenário, a crise forçada de reformas solapadoras de direitos, o aprofundamento da miséria e achatamento do valor da força de trabalho somada à pandemia e à destruição do estado social legou ao povo das ruas a fome, as doenças, o abandono. É bom lembrar que o prefeito Bruno Covas, há poucos dias, mandou colocar pedras pontiagudas embaixo de viadutos aqui na Zona Leste, o que caracteriza uma política de jatos d’água e pedras, pensada e sistemática.
Ontem, por volta das 19:00 horas eu sai de casa e caminhei por um trecho dos baixios do Elevado João Goulart para comprar comida. Figuras conhecidas, pois são vizinhos sem teto, estavam ali sentadas no chão vazio, conversando ou dormindo. Alguns falavam do rapa em tom de ironia, acostumados ao massacre, outros revoltados, também acostumados ao assédio, mas ainda com alguma resistência, um ruído constante, ora ríspido, ora abafado, vários corpos imersos na escuridão.
O cenário mais limpo que o usual, denunciava a crueldade da retirada do pouco de proteção que esse povo possui. Colchões, barracas, cobertores todos sumiram, um assepsia fascista e excludente. O desalento é a pior das escuridões.
Foi escura, mais escura que o conhecido, a noite de cinco, madrugada de seis de fevereiro, nos baixios do Elevado João Goulart, a falta de energia elétrica só foi um requinte dessas noite que parecem não mais acender.
Ricardo Queiroz
Foi escura, mais escura que o conhecido, a noite de cinco, madrugada de seis de fevereiro, nos baixios do Elevado João Goulart