A ultradireita argentina está testando novas formas de violência paraestatal, que começam como ataques virtuais às redes, mas que se espalham até os domicílios e familiares dos seus alvos. Esta investigação revela quem são os integrantes de um dos grupos mais implacáveis e descreve detalhadamente sua maneira de operar. Também avança em quais são suas ligações com o Poder Executivo. Conhecer esses meandros é chave para colocar em prática estratégias de autodefesa.
A guerra encabeçada pelo governo de Javier Milei contra a população e suas instituições representativas incluiu, até o momento, ações repressivas cada vez mais virulentas nas mobilizações e manifestações de rua; encarceramentos em massa que, a partir de uma aliança com o que há de mais viciado dentro do sistema judiciário, levam a acusações malucas como a de “terroristas” que tentaram perpetrar um “golpe de Estado” contra aqueles que ousaram resistir à Lei Ônibus, uma cruzada judicial contra as organizações sociais, a retenção de alimentos e cortes orçamentários cujos efeitos foram sentidos pelos setores mais vulneráveis da sociedade.
Mas há uma prática primitiva da extrema direita que precisamos reconstruir meticulosamente para explicar o novo alcance que esse setor adquiriu desde 10 de dezembro, quando Milei e seu partido A Liberdade Avança (LLA, por sua sigla em espanhol) cruzou um limiar histórico e assumiu o controle do Estado: os ataques digitais contra opositores ou para resolver disputas internas do agora partido do poder, que vão além das telas e se transformam em perseguições e agressões físicas.
As ações violentas que já eram realizadas por suas variadas organizações – como o atentado contra Cristina Kirchner – apresentavam conexões com o governo. A diferença substancial é que, agora, a condição paraestatal dos ataques depende integralmente de uma força que empunha o ferro do Estado nacional. Ou seja, um setor que há oito meses ocupa os dois lados da disputa.
A seguir, apresentaremos os seguintes pontos:
– a maneira como os tanques digitais atacam em bando;
– a identidade dos principais membros de um dos grupos que encabeçam essas perseguições e seus vínculos políticos;
– os destinatários desta violência impiedosa.
A arte do doxxing
Há anos, a conta @Antiponzista conseguiu se instalar massivamente no universo tuiteiro, inclusive com interações no interior dos círculos da direita radical. Quando Javier Milei assumiu a Casa Rosada, o responsável pelo perfil avaliou que o único modo de atacar esse novo governo era atingi-lo no terreno que o presidente se sente mais cômodo: o digital. Rapidamente, começou a publicar informação sensível nas redes. O primeiro golpe se produziu em fevereiro. Com a ajuda de outro usuário (@criminaalmambo), e através de um pedido de Acesso à Informação Pública, descobriu um dado explosivo: a lista de pagamentos da Casa Rosada revela que uma tropa de tuiteiros da ultradireita, reconhecidos por sua crua agressividade, são frequentadores assíduos. “Em poucos dias, caíram as máscaras de vários tuiteiros que diziam que o apoio a Milei foi feito ‘em nome da liberdade’, mas não, foi pela grana”, alertou em sua conta, como prefácio de uma enxurrada de posts que atingiram a base da estrutura armada pelo todo-poderoso assessor presidencial Santiago Caputo.
O primeiro caso que revelaram foi o de Juan Pablo Carreira (@jdoedoe101101), que surpreendentemente apareceu na folha de pagamentos como diretor de Comunicação Digital, um cargo que não havia sido divulgado e que só foi oficializado cinco meses depois.
Outro personagem exposto foi o influente médico geneticista Daniel Parisini, conhecido como “el Gordo Dan” (@gordodan_), a quem desnudaram como assíduo visitante da Casa Rosada e até mesmo como aquele que autorizava os pagamentos de outros tuiteiros radicalizados.
Parisini admitiu o fato, através de uma resposta imediata a @Antiponzista, que se tornou uma confissão: “esta era a estupidez que tinha? Fui ajudar a Juan [Pablo Carreira, vulgo Juan Doe, a montar sua equipe, porque em 19 de novembro ganhamos as eleições. Também fui como convidado ao Congresso para escutar o discurso do meu presidente, porque ganhamos as eleições, e vocês ficaram com o c… ardendo (…) eles dão a você coragem para mostrar a cara ou vamos ter que ‘doxxá-lo’?”.
Segundo a página oficial argentina.gob.ar, o termo ‘doxxing’ se refere ao ato de “coletar e publicar informação pessoal de alguém ou de um grupo sem seu consentimento, com o objetivo de prejudicar sua carreira pública e profissional”. Tem sua origem na frase “expose dox”, uma contração de “docs”, ou seja, documentos. Parisini falava de algo que ele sabe bem: em junho de 2021, publicou no Twitter os endereços postais de um grupo de jornalistas que expuseram vínculos entre grupos e influencers de ultradireita. Todos esses comunicadores foram ameaçados após o doxxing.
Mas @Antiponzista e @criminaalmambo não retrocederam diante da ameaça e continuaram revelando a estatização de uma manada de tuiteiros que até há pouco tempo costumavam criticar a “casta política”. Tomás Jurado (@ElPelucaMilei) e Lucas Luna (@sagazluna) foram nomeados em seguida como novos membros das equipes de Comunicação Digital e Comunicação Pública, respectivamente. Soma-se a isso a revelação de um encontro entre o sobrinho de Luis “Toto” Caputo (ministro da Economia de Milei) e seu amigo Juan Neuss, integrante de uma poderosa família, dona de um conglomerado empresarial especialmente do ramo da energia elétrica. Hoje os Neuss avançam com múltiplos negócios com ajuda do assessor presidencial. Também incluíram os nomes reais de usuários conhecidos por sua perseguição obsessiva a opositores.
A gota d’água foi a publicação de uma declaração assinada com a caligrafia do médico Parasini (Gordo Dan) confirmando seu trabalho como residente do Centro Nacional de Genética Médica do Instituto Malbrán, entre junho de 2019 e setembro de 2023, um mês depois do triunfo de Milei nas primárias argentinas.
A partir daí começou a temporada de caça desencadeada pelos libertários, exibindo um modus operandi lubrificado. Em 13 de março, uma semana depois das postagens contra ele, Gordo Dan publicou seu nome e sobrenome, o nome por trás da conta (@Antiponzista), e acrescentou: “A partir de agora tuíta com nome, sobrenome e rosto”. O doxxing foi complementado por três fotos em close.
Dias mais tarde, um entregador do Mercado Livre tocou a campainha de sua casa e entregou a ele o típico pacote amarelo da empresa, dentro do qual havia uma tigela de plástico com tampa transparente com terra e vermes. Horas depois recebeu uma mensagem avisando que se continuasse (fazendo as denúncias?), também iria acabar na terra. No dia seguinte, um sujeito se mostrou tirando fotos em frente à sua casa. Publicaram imagens, nomes, endereços, placas de carro e dívidas bancárias de toda a sua família, que também foi ameaçada.
Finalmente, em grupos do Facebook e do Marketplace, colocaram em marcha uma modalidade chamada swatting, surgida na cultura online norte-americana, que consiste em enganar um serviço de emergências dando uma falsa notificação de incidente grave para que envie uma resposta urgente. A versão local implica na publicação de anúncios falsos (ofertas de emprego, vendas, doações de móveis e eletrodomésticos) para que as pessoas venham com alguma expectativa de realizar um trabalho ou, como ocorreu no caso de @Antiponzista, retirar uma geladeira e um fogão que supostamente foram oferecidos de maneira gratuita. Ao chegar na casa, os ingênuos eram alimentados por uma mensagem avisando que estavam sendo gravados porque era uma brincadeira. O objetivo era se vingar do proprietário e de sua casa.
“Quiosque, ‘Farinha’ e Coquinha”
Quando @Antiponzista percebeu que os ataques não parariam, decidiu negociar a rendição. Através de uma conta vinculada aos usuários libertários mais repulsivos, consultou o que deveria fazer para que cessassem as hostilidades. A resposta se limitou ao reenvio de um print de tela: “que saia do Twitter”. Uma linha mais abaixo dizia: “as pessoas foram para (sua) casa por acaso? Haha”.
O usuário que mandou essas mensagens foi @BarraniBad (no passado: @barrani44 / @badbarrani). Mas antes de revelar sua identidade e trajetória, vamos nos deter no autor intelectual: se trata de um traumatologista do Hospital Alemão, Alberto Muzzio (@soycarpintero11), um furioso adepto da extrema direita, de comprovados vínculos com seu colega, o geneticista Gordo Dan. Este último foi quem recebeu a informação e deu início ao doxxing que imediatamente viralizou.
Nossas investigações revelam que o titular de @BarraniBad é Federico Javier Gorga. Esta pessoa lidera desde Madrid um grupo autônomo de agitadores ultralibertários ligados ao Governo, denominado KFC (em espanhol, “Kiosco, Falopa e Coquita”, em português “Quiosque, ‘Farinha’ e Coquinha”), um sinistro anagrama de CFK (Cristina Fernández de Kirchner).
Até 2021, compartilhavam spaces e atividades com aqueles que hoje integram o elenco oficial da LLA, no qual falavam “banalidades”, segundo conta hoje sua fundadora, a jornalista Tabatha Barrera Carlini. Como resultado do entusiasmo que despertaram nos usuários, ela e outros acreditam que o KFC poderia se converter num player influente. Um deles foi Marcos Urtubey, filho do ex-governador de Salta, que fez parte da pequena mesa da campanha nas eleições legislativas de 2021, junto a Santiago Caputo. No ano seguinte, porém, foi expulso. Ele se juntou à KFC com a pretensão de capitalizá-lo para a estratégia digital de sua frente peronista-ultraliberal – Salta Avança. Pessoas próximas a ele afirmam que sua participação no grupo durou apenas alguns meses. Barrera Carlini o abandonou em 2022 e desde então sustenta uma ferrenha militância libertária, com o título de “Clube da Liberdade”. Costuma publicar fotos dos encontros com os tuiteiros pró-governo mais proeminentes
KFC, já sob a liderança exclusiva de Federico Gorga, tornou-se um grupo de caça de usuários ou espaços de discussão virtual protagonizados por opositores, sejam peronistas, radicais ou de esquerda. Enquanto os usuários falam, eles publicam seus dados nos comentários com a intenção de interromper as discussões. Os ataques possuem motivações políticas próprias, com a misoginia em primeiro plano, ainda que também atuem como mão de obra disponível, como ocorreu no caso da perseguição ao @Antiponzista.
Publicam um blog com informação e imagens de algumas das pessoas que sofrem suas operações e reivindicam as ações como troféus. Ali, costumam tornar público tudo, desde relatórios pagos por empresas (principalmente de infoexperto.com) até fotos privadas de cunho sexual.
Uma figura que merece uma atenção particular é a dos intermediários sombrios entre as tropas estatais e estes grupos radicalizados. No caso do KFC, surge uma jovem do PRO, com forte vínculo a altos funcionários nacionais, apelidada de Croata (@itscroa). Numa publicação recente, Gorga disse o seguinte: “acabei de ler o que a Croata mandou. Disse que alguém rude do governo disse a ela que iriam mexer conosco, os do KFC”. A ativista também costuma encomendar doxxing a eles.
Nas remessas realizadas através do Mercado Livre (terra com vermes ou uma bandeira de Israel, como aconteceu com o usuário @BadEmpanada) e outras ações que incluíram intermediários, como a realização de desfiles ameaçadores, ou a contratação de caminhões basculantes que estacionam na porta dos agredidos, encontramos um mesmo remetente: Associação Civil dos Consumidores pela Liberdade (ACCPL, por sua sigla em espanhol). Após meses de buscas infrutíferas, descobrimos seus principais membros através da Inspeção Geral de Justiça (IGJ): em primeiro lugar, Federico Javier Gorga, o que confirma, formalmente, sua responsabilidade em vários ataques (não só contra @Antiponzista).Os outros sócios são Melinda Noemí Barberis (companheira de Gorga), Mirna Zulma Morillo Gómez, Nicolás Ezequiel Jaúregui Lorda e Pablo Antonio Mazzitelli.
Federico Gorga define a si mesmo como “um psicopata” que apenas deseja “arrebentar e destruir gente”. Estudou Filosofia na Universidade de Buenos Aires, onde foi conselheiro da Junta Departamental em 2010. Foram tempos de um breve esquerdismo. Segundo seus vários perfis em plataformas de trabalho, hoje se dedica ao ghostwriting e a edição de publicações.
Suas atividades declaradas na Administração Federal de Ingressos Públicos (AFIP, a Receita Federal argentina), contemplam atividade editorial e assessoria, direção e gestão de negócios. Desde 2020, registra misteriosas empresas na Argentina e nos Estados Unidos, junto a sua namorada, Melinda Barberis, e um sócio, Pablo Mazzitelli: ADS SEA LLC (Colorado); Editora Redactar SRL; AWS GROUP LLC (Nevada); Editorial KFC SRL; AWS GROUP SRL; Editora Redactar SRL LLC (Nevada); Editorial Sea LLC (Nevada), em nome de Mazzitelli; Apertura KFC LLC (Novo Mexico); Gorra and Co LLC (Novo Mexico); Melinda Noemí Barberis LLC (Nevada).
A astróloga
Aylén Romano é astróloga e escritora com 64 mil seguidores no Instagram e 140 mil no X (@_venusandmars). Costuma organizar “spaces” em que qualquer um pode participar. E ali apareceram os libertários. Às vezes entrava um, às vezes dois, às vezes três. Trollavam, molestavam, atacavam. Eram libertários, mas se comportavam como nazis. Ela, feminista e peronista, não aguentou mais e os bloqueou. Nesse momento, KFC começou sua represália.
O grupo a apelidou de “a leitoazinha” e subiu em sua página da internet um relatório que inclui seu endereço. Também vazaram seu número de telefone, uma foto da porta de sua casa e dados de suas contas bancárias.
A crueldade transcendeu os limites virtuais, mesmo aqueles que o grupo já havia rompido com @Antiponzista. No início de abril, um homem muito grande apareceu na entrada de sua casa. A mãe da astróloga estava varrendo a entrada. O cara a colocou contra a parede e a ameaçou: disse a ela que se “a puta da sua filha” não se calasse, iria “matar a todos”. Mencionou o nome de seu pai, irmão e sobrinho.
Quando a situação parecia se acalmar, KFC voltou a enviar pessoas a sua casa, desta vez através do método swatting: anunciaram, através do Marketplace, que estavam doando uma geladeira na sua casa, então várias pessoas apareceram. Também brigaram deliberadamente com pessoas nas redes sociais, a quem passaram o endereço de sua casa dizendo “venha me pegar aqui, cagão”. Uma pessoa acabou atirando pedras na porta e nas câmaras de segurança que instalou logo no primeiro incidente.
Em 8 de abril organizaram um “space” com o título “masturbação grupal ouvindo a voz de Aye”. Logo, enviaram o vídeo de um homem se masturbando enquanto soava a voz dela. O número de telefone a partir do qual foi feito o envio, conforme constatamos, está no nome de Federico Javier Gorga.
Em inícios de maio, colocaram um cartaz na esquina de sua casa dizendo “nós amamos a sua voz”. Tinha a assinatura de KFC. A crueldade não parou por aí. Vários “spaces” do grupo estiveram dedicados a ela de forma quase exclusiva. Por exemplo, ao longo de maio, falsificaram fotos suas nua com inteligência artificial e as difundiram nas redes sociais.
Em 13 de maio, KFC mandou a ela três caminhões para descarregar material de construção na porta de sua casa. O serviço foi contratado através da já citada Associação Civil dos Consumidores pela Liberdade.
Mas houve uma nova operação que revela a preparação do grupo para perpetrar os ataques. Em 17 de maio, num space chamado “Gauchito Gil” planejaram instalar na entrada da sua casa uma estátua desta figura folclórica popular na Argentina, com o objetivo de encher sua porta de “moradores de favelas” que peregrinariam até lá. Finalmente , contrataram uma pessoa que a colocou, conforme registram as câmaras de segurança, mas não teve o efeito social esperado.
Em seus spaces, os membros da KFC reivindicam publicamente o uso de armas, o nazismo e o maltrato de animais. Um tema obsessivo é o sexual, também um flanco de ataque contra Ayelén. Em múltiplas discussões na rede, planejavam enviar a ela centenas de “jogos sexuais”.
Genética libertária
Outro objetivo do grupo foi novamente marcado pelo Gordo Dan. Javier Smaldone, codinome @mis2centavos, especialista em segurança de TI, costuma postar sobre os vínculos do geneticista com KFC e permanentes críticas e informações que provocam a fúria de figuras do governo como Santiago Caputo (no X, ele escreveu: “Smaldone deve ser o cara mais mongolóide do Twitter da Argentina”).
No início de maio, o grupo atacou: publicou o endereço da sua filha na web e no Marketplace apareceram muitas publicações com seu celular e endereço, dizendo que doava uma geladeira e um televisor. A jovem recebeu mais de cem mensagens, chamadas telefônicas, além de múltiplas visitas à sua casa.
Dias depois, a Croata, intermediária entre KFC e o governo, atacou-a acusando seu pai de “pedófilo e assediador”. Imediatamente, o Gordo Dan ordenou que isso viralizasse. No último Dia dos Pais, eles comentaram um post com a captura de tela da situação de crédito de Smaldone.
O ataque seguinte do KFC foi sofrido por Edgardo Alessio, que há 14 anos é dono de uma empresa de peças de motocicleta em Lanús, na Grande Buenos Aires. Depois de levantar seu perfil no spaces por suas críticas ao governo, ele começou a receber ataques, particularmente do perfil @PorPeronia. Utilizaram vários métodos, entre eles o “review bombing” contra sua empresa. Esse método consiste em publicar resenhas negativas em massa na página do Google. Seu negócio passou de uma pontuação de 5 estrelas para 1. Nas críticas, imputavam a venda de carros roubados, bater em mulheres e ser pedófilo. Alessio precisou mudar o nome de seu comércio e dar baixa no Google. Além de fazer a ele ameaças constantes, também postaram seu endereço e dados, e fotos de seu filho menor de idade.
Esta última ação fez o comerciante explodir: através de um tuiteiro libertário, conseguiu o nome e o endereço de um de seus assediadores e foi atrás dele. “Liguei para ele na porta de sua casa, disse ‘estou aqui fora, apaga tudo porque vou entrar à força’, e ele apagou tudo”, conta satisfeito, mas admite que todos os dias escrevem para ridicularizá-lo.
Fogo amigo
Há ataques coordenados que não levam a marca do KFC, mas repetem suas metodologias e a conexão direta com os mesmos integrantes do governo argentino.
Constanza Moragues comandou a aterrissagem libertária na Câmara dos Deputados da Província de Buenos Aires em 2022, quando o partido de Milei rompeu com o bloco de José Luis Espert para formar sua própria sigla. Sua relação com o presidente era direta, sem intermediários. Em 2023, revalidou sua bancada com outros 14 legisladores na Câmara dos Deputados. Mas, a essa altura, as coisas haviam mudado. O articulador era Sebastián Pareja, que pedia a todos que se sujeitassem. Moragues e outros oito não aceitaram essa liderança.
A disputa interna se tornou feroz. Em 2 de novembro, duas semanas depois das eleições, um usuário (@daniel.placido.3192) comentou um post de Moragues com um detalhado relato do que ela havia feito no mesmo dia: ir ao dentista, cortar o cabelo, comprar uma camiseta.
Em 5 de dezembro, o dia que se oficializou o rompimento do bloco, Gordo Dan postou a lista de quem havia desembarcado do barco (incluindo Moragues), os acusando de “vender-se por dinheiro” ao governador Axel Kicillof, e dedicou a ela uma publicação especial: “jogou e apostou no perdedor, Moragues. Nós elegemos um presidente e o cara (Sergio Massa) que a comprou está fugindo para os Estados Unidos. Agora lembre-se de uma coisa: o povo que votou em você não esquece. Vamos colocá-la na berlinda assim que você pegar o primeiro suborno que lhe oferecerem. Saudações”. Ela respondeu a ele: “Quem você pensa que é para falar assim de mim sem me conhecer?”. Dan metralhou: “O cara que fez de você deputada, idiota”.
“Nada acontece se todos os traidores forem com Massa”, twittou seu ex-companheiro de bloco, o novíssimo deputado Agustín Romo, outra peça hierárquica dos tanques digitais que respondem a Santiago Caputo. Imediatamente, acusaram os rebeldes de votar a favor do endividamento solicitado por Kicillof, algo que nunca aconteceu.
Enquanto se dava essa discussão, outro usuário (@ExponiendoVagos) reagiu a uma postagem do Gordo Dan com uma mensagem que revelava o endereço de Moragues. “Já temos o endereço da sua casa, esta noite você não dorme”, ameaçaram. O celular oficial da deputada começou a receber mensagens com vídeos de torturas, ameaças de morte e insultos. Em seu testemunho na Justiça, ela revelou que estavam seguindo a sua mãe e tocando a campainha de sua casa para insultá-la.
Mas isso não foi tudo. Dias depois, entraram em sua casa. Quando ela voltou, encontrou um caos e um detalhe perturbador: um pote de geleia estava aberto na geladeira, apoiado sobre uma prateleira. Preventivamente, ela decidiu jogar fora todos os alimentos.
Hoje, por recomendação do Ministério Público, Moragues e sua mãe possuem escolta. Em uma entrevista à Radio 10, ela afirmou o seguinte: “eu sei, todos sabemos, nós temos os prints e eles foram anexados na denúncia, e mostram que esses usuários pertencem ao partido LLA. Não me consta que Milei endosse isso, mas também não sei se ele pede que interrompam”.
As portas do céu
O Salão dos Heróis possui característica de mito urbano, inclusive para quem frequenta a Casa Rosada. Suas vitrines estão cobertas de jornais e as autoridades não permitem que os jornalistas credenciados circulem por ali. De fato, um repórter que se atreveu a gravar o exterior da sala, teve sua credencial retirada. Gordo Dan, que nega ter um cargo formal mas não se conhece dele outro emprego, e Juan Pablo Carreira, o mencionado diretor nacional de Comunicação Digital, entram e saem do escritório de seu chefe, Santiago Caputo, responsável pela narrativa oficial e agora por muito mais.
Desde o início da administração libertária, o sobrinho do ministro Luis “Toto” Caputo e do empresário Nicolás “Nicky” Caputo (sócio do ex-presidente Mauricio Macri) circulava com absoluta liberdade pelos corredores da Casa Rosada. É uma figura chave do círculo presidencial. Mas a saída de Nicolás Posse, que concentrava de forma suspeita os poderes de Chefe de Gabinete, acabou abrindo as portas do céu para monitorar cada um dos movimentos governamentais. Seu desembarque principal, com gente própria, foi na Agência Federal de Inteligência (AFI), logo após a demissão de Silvestre Sívori, homem ligado a Posse. Além de informação confidencial, passou a gerenciar os fundos opacos reservados a espiões. Dessa suculenta caixa preta sairia o financiamento das redes paraestatais ultradireitistas.
A relação entre grupos como KFC e o Salão dos Heróis ficou demonstrada no caso do @Antiponzista. A origem dos assédios foi a revelação precoce de seus principais membros (Parisini, Carreira, Jurado, Luna) e de outros integrantes inorgânicos que se reportam ao tatuado assessor presidencial.
No entanto, um destacado estrategista comunicacional do LLA, especialista em redes digitais, nega qualquer vínculo com KFC: “na realidade, são os excluídos do partido. Gente muito demente que não tem lugar”. Mas confirma o ponto de partida: em 2021, aqueles supostos dementes formavam parte do mesmo “mundo Twitter” ultralibertário que foi crescendo como uma hera incontrolável. “Antes era tudo a mesma coisa. Depois fizeram esse KFC e nós demos a eles uma tarefa”.
Três anos mais tarde, podemos reconhecer diferentes etapas do enxame ultradireitista. Uma primeira camada se somou à construção de uma ferramenta partidária em 2021, quando Milei e a agora vice-presidente Victoria Villarruel foram eleitos deputados. Numa segunda etapa, a tropa cresceu no calor da adoração pública ao seu máximo líder, até se converter numa peça-chave durante a campanha – preponderantemente digital. A terceira fase é a que encabeça Caputo desde que começou a construir o exército do partido governista, já com as ferramentas estatais, inclusive as da AFI.
Contudo, existem grupos radicalizados como KFC, cujos antecedentes imediatos foram Los Copitos, Revolución Federal e Equipo Republicano, que estão por fora dos organogramas porque são considerados como “um circo de esquizofrênicos” e porque seus integrantes se recusam a se transformar em uma figura que perseguem e da qual eles têm nojo: o serviço público. No entanto, operam como mão de obra disponível, como um feroz bando autônomo, disposto a destruir alvos no atual cenário de guerra. A opção de desqualificá-los com patrulhas, assim como já ocorreu, ficou absolutamente desacreditada quando um suposto grupo marginal como Los Copitos, através de uma rede complexa, esteve a ponto de assassinar Cristina Kirchner.
Os ataques paraestatais requerem uma resposta urgente por parte do Poder Judiciário, que se mostra passivo. Mas também refinar nossa capacidade de investigação como parte de um repertório de estratégias de autodefesa indispensáveis para esta caça às toupeiras de guerra.
(*) Texto publicado originalmente em Revista Crisis.
(*) Tradução de Raquel Foresti.