Foi de lavada. Donald Trump conquistou o apoio de 295 delegados frente aos 226 de Kamala Harris no Colégio Eleitoral. E ganhou na Pensilvânia (50,5%), no Arizona (52%), na Carolina do Norte (51,1%), na Georgia (50,7%), em Michigan (49,8%), Nevada (51,5%) e Wisconsin (49,7%), citando apenas os estados-pêndulos.
Mas, na cidade da Filadelfia, este pequeno oásis da Pensilvânia, de tradição civilizatória e majoritariamente negra, 78,7% da população votou em Kamala. Por aqui, Trump só teve 20,1% dos votos.
Com este número em mente, nesta quarta-feira (06/11), um verdadeiro “day after”, eu fui às ruas para sentir o tamanho da ressaca eleitoral na cidade. Estou no Norte da Filadélfia, numa área de estudantes, a cinco quadras de uma grande avenida, a N Broad St, que me deixa no centro da cidade. Este é o percurso que fiz a pé do hotel até a City Hall, a prefeitura, um ponto central.
“Não tem o que fazer”
No cruzamento da N 20th St com a W Diamond St, encontrei Meredith, uma mulher negra, 32 anos, funcionária de uma rede de supermercados. De uniforme, ela aguardava o ônibus e sobre o resultado das eleições, avaliou:
“Não tem o que fazer. Tanto faz ser Kamala ou Trump, democratas ou republicanos. A vida real acontece longe dos políticos e nada muda nunca. Sobe um, sobe o outro e continua tudo igual. Não tem o que fazer”, reiterou.
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Questionei sobre o impacto de Kamala na presidência como mulher negra e ela foi assertiva, “Não Kamala, ela mente”, afirmando o bordão trumpista, o mesmo que ouvi anteriormente de dois rapazes também do bairro.
O ônibus chegou, Meredith subiu e eu segui pela W Diamond St, onde cruzou um caminhão de lixo que pelo menos desde sexta-feira (01/11), quando cheguei, não passava por estas bandas. Os sacos se acumulam nas latas e transbordam pelas ruas.
“Estou em choque, não sei o que vai acontecer amanhã”
Virei na N Broad St, uma grande avenida que liga o Norte da cidade à prefeitura, ponto central da cidade. Nela fica o campus da Temple University, que tem uma cafeteria boa e aberta ao público não universitário.
Embora a maioria (39%) da Filadelfia seja negra, somente 14,1% dos negros se formaram em suas universidades. Entre os brancos (33,5% da população) o índice sobe para 55%, depois vêm os asiáticos (14,3%) e os latinos (8,74%), segundo o Data USA.
A mesma fonte informa como custo médio das mensalidades das universidades públicas – sim, no coração do neoliberalismo é preciso pagar também nas públicas – algo entre US$ 20.173,00 e US$ 34.679,00.
Ao desembolar US$ 15,00 (R$ 70,00) em um café da manhã modesto na cafeteria da Temple, eu avistei Oria, uma menina adorável, negra, 19 anos, graduanda em Ciências da Educação que me passou suas impressões sobre o resultado eleitoral.
“Eu estou em choque. Como mulher negra, eu sinto que o meu futuro está indeterminado. Não sei o que vai acontecer amanhã e eu estou muito assustada”, contou.
Sobre a derrotada de Kamala Harris, afirmou: “as pessoas não querem uma mulher negra na Presidência. Muitos votos democratas migraram para Trump por causa disso. Após décadas de luta, nós até conquistamos oportunidades iguais, mas podemos chegar até um nível de comando, não a Presidência, ainda mais para uma mulher negra”.
“Trump vai colocar dinheiro no bolso das pessoas”
Ao sair da Temple, encontrei um casal, ambos jovens negros e assim que a moça começou a lamentar a derrota de Kamala, “uma mulher negra…”, o rapaz a interrompeu afirmando que “Kamala não sabe de nada” e eles começaram um bate-boca, que deixo o registro, porque apesar de ter inviabilizado a conversa, ele mostra o calor da polarização.
Na sequência, encontrei Jarryd, também negro, 25 anos, a quem dei em primeira mão a notícia da vitória republicana. Ele a recebeu com um sorriso. “Ele venceu? Isso é bom, a América vai crescer novamente. Trump vai colocar dinheiro no bolso das pessoas e vamos ter uma segunda chance. É uma boa notícia”, afirmou, numa sucessão de slogans.
Jarryd é parte, segundo as pesquisas, da parcela de jovens atraída pelo trumpismo. Na noite desta quarta, em uma nota forte, o senador Bernie Sanders destacou o fenômeno ao dizer, entre outras coisas, que o Partido Democrata que havia perdido o apoio da classe trabalhadora branca nas eleições de 2016, agora conseguiu perder o apoio da maioria dos trabalhadores negros e latinos.
“A América não está preparada para uma mulher negra na Presidência”
Para Josh, porém, a questão é outra. Apresentando-se como um “jovem de sessenta e poucos anos”, ele também apontou a questão do machismo:
“O mundo não está preparado para ter uma mulher negra na Presidência dos Estados Unidos. Ela não foi eleita nos grandes estados do país: Texas, Tennessee, Kansas, Arizona, onde o racismo é grande. O mundo não está preparado e os homens não deixam as mulheres escalarem os altos postos de comando”, afirmou.
Josh, também negro, é agulha em palheiro em um universo absurdamente majoritário de homens que praticam ou deixam a misoginia correr solta entre seus pares. Uma vergonha que atravessa tendências partidárias, faixas etárias, classes sociais.
O medo de Oria e das demais meninas, praticamente crianças, que vocês lerão adiante não é retórica. Ele incide no aumento da violência, na contenção dos corpos, na restrição dos afetos.
As inserções de Trump contra Harris foram brutais, de “burra” a “puta”, o que se viu e ouviu formará uma geração de meninos que, inseguros neste mundo brutal, tendem a se espelhar em Trump, um homem de sucesso.
Pelo menos, era nisso que eu estava pensando quando Ahmad, um vendedor de rua de aparelhos eletrônicos, sentado em um banco de esquina, chamou minha atenção. Negro, na faixa dos sessenta, ao contrário de Josh, ele acredita mesmo que “Trump será um bom negócio para a América”. Não por ele ser bilionário ou “business man”, mas porque “Biden não fez nada”. Perguntei dos programas e políticas voltadas para os mais pobres, Ahmad sorriu e abriu os braços, apontando para sua barraca, como quem diz “veja a minha situação”.
“Os preços subiram e no alto ficaram”, falou, antes de emendar, “com Trump vai ser bom”.
“A economia ficou um lixo”
Ao avançar pela N Broad St, encontrei duas meninas brancas conversando no cruzamento com da avenida Cecil B. Moore, nome do ativista dos direitos civis dos Anos 60, um dos líderes dos protestos contra a segregação no Girard College.
Jully, branca, 23 anos, não vota porque vem da Dinamarca – o que me fez lembrar de outro garoto, do mesmo país, que conversei no comício trumpista da Madison Square Garden. Ele mencionou as guerras como um fator decisivo para seu apoio a Trump. Jully, por sua vez, está mais assustada agora com Trump do que estava com Biden.
“A Dinamarca é aliada dos Estados Unidos e a nossa primeira-ministra [Mette Frederiksen] disse que o resultado da eleição não alterará em nada as nossas vidas, mas eu estou assustada com o que o pode acontecer, além de decepcionada e triste pelos amigos da América”.
A Guerra na Ucrânia, o genocídio na Palestina e a agora a Guerra no Oriente Médio minaram a credibilidade de Biden. Adam, cadeirante branco, de 38 anos, disse agora acreditar que “os Estados Unidos irão na direção correta.
Ele mencionou que as guerras vêm matando gerações de americanos, inclusive a sua. “Não queremos que as pessoas morram, mas que voltem para casa e que essas guerras acabem”.
Mas o fator crucial que o fará votar em Trump é a economia. “Nos anos em que Trump estava no governo, nós tínhamos dinheiro. Com Biden, nós quebramos. Agora teremos um bom período”.
“Os preços e impostos subiram, as pessoas ficaram sem emprego, a economia ficou um lixo. Se ela vencesse, nós teríamos mais quatro anos do mesmo”, complementou, ao repetir o bordão de que Trump “Make America Great Again (MAGA)”.
Segui adiante pela Broad St por igrejas bizantinas, batistas, católicas, com as portas fechadas. Vi as mães deixando os filhos nas creches e a confusão dos adolescentes nos colégios tradicionais do bairro.
Em meio ao movimento, a uma quadra da City Hall, foi que me dei conta de que havia conversado com mulheres e homens, adultos e jovens, negros e brancos, mas ainda não havia encontrado nenhum latino ou hispânico, uma população que representa 15,5% dos que vivem na Filadelfia.
“Imigrantes ilegais pegam o lugar dos que chegaram antes”
Em busca dos “Hermanos” na Filadelfia, acabei conversando com Manuh, que parecia muito latino, mas é um indiano de 48 anos, que vende uma série de produtos, de alimentos processados a carregadores de celular, num quiosque próximo à Prefeitura.
Em sua avaliação, a vitória de Trump será “muito melhor para a economia e para os negócios. Não só os dele, mas os de todos, afinal, Trump fará a América crescer novamente”. É impressionante como o bordão se fixou na mente das pessoas.
Manuh está feliz porque Trump irá aplicar sua política de deportação em massa dos imigrantes ilegais. Além da questão da segurança, ele argumenta, os imigrantes ilegais atrapalham o comércio porque pegam o lugar daqueles que estão legalizados no país. “Menos concorrência, isso é bom para todo mundo”, apontou.
Quando atravessei os portões da City Hall, finalmente, pude encontrar os latinos. Antes, no farol, tentei acenar para um rapaz, que parou de patinete ao meu lado, mas ao ver sua mochila grande de entregas, desisti. Passei então a procurá-los em seus locais de trabalho.
Perdi uns bons minutos diante de uma barraquinha de comida, observando um casal de latinos dar um duro danado, num calor que deve ser terrível, dentro de uma kombi estilizada, mas a fila só aumentava. Então voltei para a prefeitura e localizei não apenas um, mas cinco latinos num canteiro de obras.
Do grupo, apenas Carlos quis falar comigo: um mexicano de 40 anos, que há dez anos está no país. Ele mora Delaware e trabalha na Filadélfia. Em sua avaliação, “dá no mesmo” a vitória de Trump ou de Kamala nestas eleições, mas ele acha que a vitória de Trump será “boa para a economia”.
“Estou aqui há dez anos, acredite em mim, a economia com Trump estava muito melhor”, afirmou, ao me explicar que “se a economia do país vai bem para eles (dos Estados Unidos), isso melhora a vida de todos os demais”.
Carlos diz não gostar de Trump por conta da postura agressiva do bilionário contra os imigrantes. “Biden e Kamala são muito melhores neste sentido, mas para a economia…”, refletiu.
“Você é contra ou a favor de Trump?”
Saí da prefeitura e fui me sentar no Love Park, onde assisti a um casamento em plena luz do dia e a uma passeata, de meninas muito jovens, em repúdio à vitória de Trump.
“Meu corpo, minha escolha”, afirma um dos cartazes em defesa dos direitos reprodutivos, ameaçados com a eleição do republicano. Assim como em seu governo anterior, os estados agora terão um papel decisivo na proteção destes e de outros direitos.
A maré, porém, não é nada boa. Além de carregar os estados-pêndulos, vencendo com folga a eleição, o Partido Republicano conquistou também maioria na Câmara e no Senado, dando folga e poder a Trump, inclusive, para se livrar das acusações que pesam contra ele na Justiça.
E já estava indo embora, rumo à belíssima Biblioteca Pública da Filadelfia, onde este texto foi escrito, quando reconheci, ao longe, um trailer vendendo tacos mexicanos. São três barquinhas, bem recheadas, a US$ 15,00, que, com o câmbio estratosférico, equivalem a R$ 70,00.
Pedi algumas palavras sobre as eleições, mas nenhum dos três mexicanos do trailer toparam falar. Insisti, falei do Brasil, de Lula, do México e nada. Fotos por aqui, ninguém me permitiu até agora. Então, fui para um banquinho e devorei os meus tacos sob o olhar desconfiando e divertido dos três.
Minutos depois, voltei atrás de uma bebida e, então, o mesmo que havia negado a entrevista me perguntou.
“Você é contra ou a favor de Trump?”
Fui sincera, e ele também:
“É um desastre. Trump vai nos deportar e estamos todos com muito medo do que vai acontecer”.
(*) Tatiana Carlotti é repórter do Fórum 21, com passagem por Carta Maior (2014-2021) e Blog Zé Dirceu (2006-2013). Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).