Passado um mês da reunião em que várias deputadas e deputados do partido A Liberdade Avança (sigla fundada pelo presidente de extrema direita Javier Milei) tiveram com os maiores criminosos da Argentina, condenados por violações aos direitos humanos na última ditadura militar do país, o Congresso argentino ainda não deu qualquer resposta institucional. Esta nota reconstrói detalhes do encontro, as palavras ditas, as estratégias desenhadas e um silêncio inquietante.
“O que você é? O coordenador da viagem de estudos?”, disse a deputada libertária María Fernanda Araujo a seu companheiro de bloco, Beltrán Benedit, que estava no meio do furgão Renault Master Branco, placa MBI546, que os levaria à prisão de Ezeiza. Guillermo Montenegro e Alida Ferreyra riram, como se na verdade empreendessem um passeio de amigos. Lourdes Arrieta se acomodou em um dos assentos dianteiros, alheia ao que acontecia ao seu redor, um momento depois, dormiu. Rocío Bonacci passou a falar pelo telefone.
Os seis haviam se encontrado neste 11 de julho passado, às 13h, na esquina das ruas Rivadavia e Entre Rios, para fazer uma “visita humanitária”, segundo havia adiantado Benedit alguns dias antes, no chat que reúne os 38 legisladores do partido, incluindo o presidente da Câmara baixa, Martín Menem – sobrinho do ex-presidente Carlos Menem (1989-1999). Dos que confirmaram sua presença na visita carcerária, a única que faltou foi Emilia Orosco, que desistiu do plano no último minuto.
Araujo voltou a dirigir-se a Benedit, desta vez com maior curiosidade.
– Beltri, o que vamos fazer hoje? – perguntou.
– Eu já falei com Fernando Martínez, o diretor do Serviço Penitenciário, para que possamos falar com (Alfredo) Astiz, (Ricardo) Cavallo e (Alberto) González – respondeu.
Por alguns segundos, todos ficaram em silêncio. Araujo chegou à política por influência de Juan José Gómez Centurión, um ex-militar colaborador da ditadura, e é irmã de um dos que soldados mortos na Guerra das Malvinas. Sua pergunta mostrou certa pitada de ingenuidade, como se o resto desconhecesse o prontuário dos anciãos com os quais iriam se encontrar.
– Che, é muito difícil ir ver o Astiz. Ele é o “anjo da morte” –, observou.
Montenegro tratou de diminuir o desconforto que Araujo começava a sentir. “Quem quiser, que o escute e quem não quiser, não o escute”, disse. Para terminar de convencer a companheira de bloco, confessou que ele mesmo já havia ido muitas vezes visitar os repressores. Bonacci, que também se mostrou surpresa pelos nomes que havia escutado, não parava de mandar mensagens pelo WhatsApp para seu pai, José Bonacci – representante do partido Una-se, que pedia de maneira insistente que ela descesse da van.
Ferreyra propôs “emprestar seu ouvido por 15 minutos” a cada um dos genocidas que estão alojados no cárcere de Ezeiza: a Alfredo Astiz, Alberto González e Ricardo Cavallo – que acabou não participando do conclave –, mas também a outros tantos. O deputado “coordenador” terminou de ler a lista dos condenados por delitos de lesa humanidade que iam ver, entre os quais havia torturadores, estupradores e assassinos, contudo, ele preferiu catalogá-los como simples “veteranos das Malvinas”. Ao longo do caminho, adiantou a seus colegas libertários que já estava trabalhando em um comunicado sobre o encontro, que logo mais tarde foi cancelado por ordem de Menem.
Os outros repressores que os esperavam eram Raul Guglielminetti, Carlos Guillermo Suárez Mason (filho), Antonio Pernías, Gerardo Arráez, Honorio Carlos Martínez Ruíz, Juan Manuel Cordero, Mario Marcote, Miguel Ángel Britos, Juan Carlos Vázquez Sarmiento, Julio César Argüello, Marcelo Cinto Courtaux e Adolfo Donda.
Reunião no SUM
A chegada dos deputados à Unidade 31 de Ezeiza foi um tanto agitada. Perto das 14h, desceram em uma entrada errada. Depois de dar algumas voltas, encontraram a porta do Centro Federal de Detenção de Mulheres, onde em um pavilhão estão alojadas mulheres, e em outro os genocidas. Ali foram recebidos pelas autoridades do lugar. Antes de entrar, Bonacci avisou a Montenegro que não iria participar da conversa com os repressores e disse que havia esquecido seu documento, ainda que o tivesse no bolsinho da bolsa.
O carcereiro, que estava na entrada, fez uma exceção e aceitou que ela o ditasse. Bonacci, de propósito, deu o número errado, mas o funcionário optou por não corrigi-la a anotou com outro nome. No lugar de Rocío, a inscreveram como Lucía. Ela já intuía que essa visita não ficaria em segredo. O próprio Montenegro havia advertido, um momento antes, que “em cinco minutos estariam em todas as mídias” e se lamentava por haver ido em um veículo da frota do Congresso Nacional.
Nenhum dos deputados, nem dos assessores que os acompanhavam, foram revistados pelo pessoal da segurança. Sequer foram retidos seus telefones celulares. A única advertência que fizeram a eles foi sobre não tirar fotos com os internos. Salvo Bonacci, os demais não cumpriram esse pedido. Em uma sala de 5×2 metros os esperavam dois médicos, duas enfermeiras e alguns carcereiros. Havia uma mesa grande com café, chá, água, medialunas doces e salgadas, vigilantes e até doce de leite. Um verdadeiro deleite, que somente os que estavam com muita fome souberam aproveitar. Beltrán se sentou, acomodou a bolsa e perguntou: “quantos presos de lesa humanidade há nesta unidade”?
Nessa conversa prévia ao encontro com os genocidas, os trabalhadores do presídio se referiram ao estado de saúde dos condenados por violações dos direitos humanos, destacaram que há três ambulâncias e contaram que estão perto de um hospital, caso haja alguma urgência que não possa ser atendida no complexo. Também destacaram que é permitido, a todos eles, o uso de celulares e computadores, para que se comuniquem por skype com suas famílias.
Ferreyra e Benedit estavam ansiosos pelo encontro com os repressores. Não era apenas uma visita mais. Desta vez não estavam sozinhos, como no 15 de março passado, quando foram ver outros genocidas da Unidade 34 do Campo de Mayo. Haviam conseguido quatro deputados a mais, entre eles as jovens Bonacci e Arrieta. Mas, além disso, ia se reunir com Astiz, um símbolo do terrorismo de Estado. O homem que se infiltrou na Igreja da Santa Cruz e sequestrou as Madres de Plaza de Mayo, Azucena Villaflor de Vicenti, Esther Ballestrino de Careaga e María Ponce de Bianco. O responsável pelo desaparecimento das monjas francesas Alice Domon e Léonie Duquet.
Quando os legisladores passaram a primeira grade, o ambiente começou a se escurecer. Alguns se adiantaram, outros se perderam pelos corredores. Bonacci foi deixada para trás entre as pequenas celas, que estavam com as portas abertas. Em uma delas, uma pequena televisão de tubo aparecia. Ao fundo, se escutava um cochichar. A deputada Ferreyra apareceu em meio à penumbra com um ancião que a levava pelo braço. Era Guglielminetti, integrante do Grupo de Tarefas do centro clandestino “Automotores Orletti” e ex-agente de inteligência do Batalhão 601.
“A reunião é no SUM”, disse o carcereiro, em referência ao “salão de usos múltiplos” do presídio. No salão, com paredes verde-água e branco, e com cortinas laranjas, havia dezenas de cadeiras bagunçadas. No andar que estava mais acima, se vislumbrava a sala de controle. Por volta das 14h40, começaram a entrar os deputados. Se sentaram um ao lado do outro, na seguinte ordem: Ferreyra, Araujo, Bonacci, Benedit, Montenegro e Arrieta. Do outro lado da mesa de plástico branca, na qual colocaram um pacote de bolachas de água e sal – que ninguém comeu –, se acomodaram os repressores.
A pedido de Montenegro, os legisladores se apresentaram diante dos detentos. Bonacci ficou apenas meio metro atrás do resto de seus companheiros e evitou dizer o seu nome. “Poderiam ser meus avós”, disse em voz alta Arrieta, que aproveitou para contar que seu pai é veterano das Malvinas. Ferreyra fez um paralelismo similar. “Poderiam ser meus tios”, soltou e foi fumar num canto.
Astiz, Pernías e González estavam sentados juntos em um canto da mesa. Os dois últimos foram os primeiros a se apresentar. González não era mais um na multidão. “El Gato”, como o chamavam na Escola de Mecânica da Marinha (ESMA, por sua sigla em espanhol), é um velho conhecido da vice-presidente Victoria Villarroel. Não é o único. Cinto Courtaux, outro dos gerontes que participou do encontro, é pai de um dos seus principais assessores, que a seguia sol a sol quando era deputada nacional.
“O anjo da morte” foi o único entre todos os repressores que não emitiu qualquer palavra durante a reunião, nem sequer disse quem era, parecia ter plena consciência de que as chances de sair dali são praticamente nulas. Nas quase três horas que durou a conversa, esteve de braços cruzados. Observou e escutou com atenção o resto dos detentos e os deputados, como se sua função ali fosse somente a de vigiar. Um momento antes, havia tomado a responsabilidade de falar separadamente com alguns dos legisladores. “Eu conheço você. É Lourdes Arrieta. Eu te sigo”, disse à libertária de Mendoza.
Quase sem exceção, cada um dos que falaram, disse que estava detido “injustamente” e que cabia a ele direito a prisão domiciliar por ter mais de 70 anos. Todos se encarregaram de repetir que eram “troféus da esquerda e do kirchnerismo”, inclusive responsabilizaram de maneira direta ao ex-presidente falecido Néstor Kirchner por estarem ali. Se mostraram agradecidos pela presença dos deputados. Era “a primeira vez que uma comitiva grande” os visitava. Depois de tantos anos, ante os olhos deste grupo de legisladores, deixavam de ser meros criminosos de lesa humanidade para se transformar em interlocutores válidos para o desenho de uma estratégia política que os ajudassem a regressar aos seus lares. “Isto é algo histórico”, lançou Benedit, visivelmente emocionado. Guglielminetti, um dos mais loquazes, parou e começou a falar da “pátria” e o “território argentino”, enquanto dava em si pequenos socos no peito, com lágrimas nos olhos. Depois, entregou ao deputado, representante da província de Entre Rios, uma pasta de papel madeira, com o título “Ideias”, para projeto de prisão domiciliar. Dentro, havia duas folhas com um texto escrito à mão, eram apenas apontamentos para que passassem ao Executivo nacional. “A Liberdade da qual vocês podem gozar é graças à nossa luta”, disse Cordero, um militar do Exército uruguaio que foi condenado a 25 anos de prisão por múltiplos crimes cometidos no âmbito da Operação Condor. Os repressores fizeram uma breve análise sobre a quantidade de anos que cada um está detido, sem se dar conta das razões pelas quais os fizeram sentar no banco dos acusados. Tiraram um momento para conversar sobre os juízes responsáveis pelas causas de lesa humanidade. Alguns, inclusive, sinalizaram que era necessário que esses magistrados fossem avaliados pelo Conselho da Magistratura.
González surpreendeu os visitantes com uma reflexão final. Deu a eles um papel impresso com um mapa das temperaturas mundiais, sublinhou que “há grande poluição” e esclareceu que a zona menos quente é o sul da Argentina, em especial a Antártida. Nenhum dos deputados entendeu do que falava.
Ao final do encontro, os genocidas pareciam esperançados. Seis deputados do partido governista os haviam escutado durante toda uma tarde. Mas, não somente isso, Montenegro e Benedit, que estavam demasiadamente comovidos, se animaram a levantar um aplauso e pediram para que tirassem uma foto todos juntos. Os repressores e os legisladores – salvo Bonacci, que se negou – se aglomeraram em um canto da sala com um crucifixo e umas figuras de santos atrás, e sorriram para a posteridade.
Mudança de época
Cinco dias depois, a visita estava no olho da tempestade. Através de uma nota do site La Política Online, foi revelado que os deputados de A Liberdade Avança realizaram essa reunião com os repressores para esboçar um plano que permita a eles gozar de prisão domiciliar. Era ou não uma agenda apoiada pela Casa Rosada? Martín Menem estava ciente? A finalidade dessa conversa era para que os genocidas pudessem voltar às suas casas e nada mais? Há em marcha um projeto para fazer cambalear os julgamentos que começaram em 2006? O encontro foi um simples balão de ensaio? É no mínimo surpreendente que os integrantes do bloco governista tenham decidido romper com certo consenso democrático no campo discursivo, apenas para que os repressores obtenham prisão domiciliar, sobretudo quando 508 das 642 pessoas detidas por delitos de lesa humanidade já estão cumprindo pena em suas casas, ou seja, 80% dos condenados, segundo dados da Procuradoria de Crimes contra a Humanidade.
A única certeza é que até a chegada de Javier Milei à presidência, nenhum legislador oficialista se havia atrevido a reunir-se com genocidas. Nenhum político de peso quis dar voz aos criminosos de lesa humanidade, muito menos a Astiz. Todos estavam mais ou menos de acordo com a premissa de que nenhum deles tinha lugar na política argentina. No passado, a Câmara dos Deputados sequer permitiu que os repressores Antonio Domingo Bussi e Luis Abelardo Patti assumissem seus mandatos, em 1999 e em 2005, respectivamente, apesar de terem sido eleitos por voto popular.
“Fomos nos reunir com repressores: não. Repressão é algo que compete às forças de segurança, em todo o caso. Fomos ver a ex-combatentes que travaram batalhas contra a subversão marxista pela ordem de um governo constitucional”, explicou Benedit no chat de legisladores, assim que a notícia sobre a reunião com os genocidas se espalhou. E regozijou-se: “as Forças Armadas venceram o terrorismo marxista pelas armas: sim”.
O deputado governista também se referiu ao rol da Justiça, em sintonia com a conversa no presídio: “não se cumpriram os direitos humanos porque aqueles contra quem lutaram, os terroristas, hoje se levantam como juízes e decidem em função da vingança, da ideologia e do negócio. As decisões violam lei e tratados”. E continuou: “qual é seu último covil dos terroristas: o Poder Judiciário? Sim. Vamos combatê-los? Sim. Como? no Conselho da Magistratura”.
Nessas mensagens, Benedit repetiu quase textualmente o que havia dito aos repressores em 11 de julho. Suas palavras eram as deles. Mas nem todos pensam igual à bancada da ultradireita libertária. As primeiras a se livrarem desse discurso foram Bonacci e Arrieta. Fizeram suas retratações em privado e em público. Ambas asseguram que foram “enganadas” pelos seus companheiros de bancada e por isso foram a Ezeiza. Se mostram a favor de que o tema seja debatido no Congresso, em uma sessão ou em comissões.
O resto dos deputados de A Liberdade Avança optou pelo silêncio, embora tenham condenado silenciosamente a reunião organizada por Benedit e Montenegro. Menem se desligou por completo. Afirma que não estava ciente do objetivo da visita e procurou encerrar a questão, diante o temor de ser envolvido em um escândalo de consequências imprevisíveis. Autorizou ou não a ida à prisão? Os que foram parte da comitiva dizem que sim. Na Casa Rosada, também tentam desviar do assunto. O ministro do Interior, Guillermo Francos, e o porta-voz presidencial, Manuel Adorni, não repudiaram o feito, disseram que se tratou de uma decisão “pessoal”, mas escorregaram e disseram que Milei não teria agido desta forma.
A vice-presidente Villarruel foi a única do governo que não opinou sobre a expedição dos deputados, apesar de seu discurso negacionista das violações aos direitos humanos e de haver se convertido no estandarte da família militar. Os irmãos Milei – Javier e Karina – espalharam versão de que ela poderia estar por trás da cúpula com os genocidas. A suspeita se baseia em que Montenegro, que oficiava como elo entre os legisladores e os detentos, era até alguns meses o homem de maior confiança de Villarruel, antes que se distanciassem por questões pessoais.
Dentro e fora do mundo libertário, ninguém esquece que a visita aos repressores se parece bastante com as reuniões que Villarruel mantinha com o ditador Jorge Rafael Videla e outros genocidas no passado, com uma ressalva que não é pouca coisa: agora, os encontros são impulsionados por funcionários públicos, que se empenham em amplificar um discurso que aparecia como marginal e apenas se vociferava nos atos que organizava Cecilia Pando na Praça San Martín.
Afinal, este é um governo que deixou de lado o pudor há um tempo, e que se ufana de fazer política através da provocação permanente. Um governo que sequer se sente na obrigação de dar explicação à ministra da Segurança, Patricia Bullrich, que havia dado a aprovação para a excursão por Ezeiza, de acordo com um chat que compartilhavam deputados, advogados, fiscais e o padre Javier Olivera Ravasi, que há alguns dias foi removido da diocese Zárate-Campana por conta deste assunto. A pergunta que alguns se fazem os governistas é até onde pode chegar o afã da dirigente macrista, tornada “libertária”, de deslocar a vice-presidente do papel de aliada da cúpula militar, como se ela tivesse interferido em um assunto que lhe era alheio, e para o qual pode ter que dar explicações na Justiça.
A visita a Ezeiza expôs uma luta não resolvida no seio do partido governista, entre um setor mais democrático e outro que se anima a reivindicar as ações dos genocidas? A pressa em resolver essa questão está mais ligada ao teor dos pedidos de respostas por parte da oposição do que às necessidades internas, venham eles dos autodenominados “dialoguistas” (os partidos macristas Proposta Repúblicana, União Cívica Radical, Encontro Federal, Coalizão Cívica e pequenas legendas provinciais), ou da frente peronista União Pela Pátria, agora focada em sair do escândalo em que o ex-presidente Alberto Fernández está envolvido, pela denúncia de violência de gênero.
Desse grupos que Milei outrora chamava de “casta política” dependerá que Benedit, Montenegro, Ferreyra, Araujo, Arrieta e Bonacci tenham algum tipo de sanção, para ao menos deixar a salvo o Congresso, mas será tarefa da sociedade em seu conjunto não permitir que os ventos da história levem o país a debater de novo algo que há muito tempo parecia estar resolvido.
(*) Reportagem publicada originalmente em Revista Crisis.
(*) Tradução de Raquel Foresti.