O governo de ultradireita tropeça na Argentina. Tardaram seis meses para aprovar um projeto de lei no Congresso, e quando parecia que começavam a se estabilizar, a economia entrou em zona de turbulência. O Pacto de Maio, firmado em julho, foi qualquer coisa menos o ato fundacional pretendido por Javier Milei. A realidade pode ser mais cruel que sua prepotência.
Daqui para frente, tudo é uma incógnita. A sorte do governo está atada à sua capacidade de manter a inflação sob controle. Mas conseguir este propósito, do qual depende a sua legitimidade, implica em atrasar o resto dos ajustes que o mercado exige. Como aconteceu com seus antecessores, Milei está obrigado a sustentar um esquema que não fecha. O peso da inércia começa a devorá-lo e o espectro da crise financeira paira outra vez. O leão está sendo domado.
Nestas condições, as birras internacionais do presidente, seu desprezo pelo protocolo e o abandono da gestão da máquina estatal podem operar como catalisadores de uma crise política de magnitude, quando o humor das expectativas mudar.
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“Quem fica com raiva, perde” reza uma das máximas da política profissional que também foi abalada pelo vendaval libertário. Justo quem tentou usar a fúria contra o sistema como arma política acabou passando pano para esse mesmo sistema, e não para de fazê-lo. No entanto, a casta não se incomoda com os percalços e seus representantes, de um lado e do outro da polarizada política argentina, ensaiam alquimias, aguardando a oportunidade para voltar ao ringue, se o furioso presidente fracassar. As velhas preocupações prescrevem, os mortos revivem e um manto de piedade funciona como auto anistia, enquanto se monta o tabuleiro para as eleições de meio mandato. Eles confiam nas forças da gravidade. Ainda que o país se afunde.
Para o resto dos mortais, o jogo é jogado no dia a dia. O desafio é lidar com a desorientação. Com a angústia. Com a ciclotimia que alterna otimismo e pessimismo, entusiasmo e depressão. É difícil ter uma ideia de como vai seguir a história. Até onde chegará a degradação. Quanto crescerá a violência e a insensibilidade. “Os horizontes preditivos da sociedade foram rompidos”, diz um experiente pensador amigo. Para quem está imerso neste redemoinho, se a política segue tendo sentido é porque algo novo está por vir – ou em breve o velho voltará pior, como dizem por aí.
Entre os de baixo, a parede
O partido de Milei, a sigla de extrema direita A Liberdade Avança, se sustenta no governo graças a dois pilares, instáveis mas decisivos: a moeda e a expectativa que gera. Da perícia para manter a credibilidade da primeira depende da sobrevivência da segunda. A governabilidade está nas mãos de Caputo (ministro da Economia). Se o roteiro falhar, entram as dublês: Bullrich (ministra de Segurança) e Villarruel (vice-presidente). A “doutrina Chocobar” – como é conhecida a “lei do gatilho fácil” na Argentina – e tanques na rua.
As pesquisas seguem registrando um importante apoio ao governo, de metade da população. Apesar da malária, há uma narrativa que funciona. A relativa estagnação do afã reformista convive com uma radicalização discursiva que transmite convicção e autenticidade. Salvo honrosas exceções, na oposição ninguém exibe níveis similares de consequências.
Além da espuma da opinião pública, existem indícios de uma preocupante mutação da raiva acumulada na sociedade. Antes, isso se transformava em ataques contra os políticos ou a estabilidade, agora o ódio se derrama de maneira horizontal, até contra o próprio povo. O que costumava irromper de baixo para cima agora espirra para os lados. Os devotos das forças do céu atribuem a culpa de um eventual fracasso governista àqueles que “não estão vendo” as mudanças. A recriminação por parte dos que padecem a crueldade libertária, manifestada contra os eleitores do presidente, se torna cansativa quando os primeiros insistem em reclamar, mesmo tendo a catástrofe em curso como evidência que reforça seus argumentos. São cenas de uma guerra civil brotando, a etapa superior da polarização.
Não é fácil sair desta armadilha. A sensação de estar desarmados domina aqueles que pretendem se opor. No governo de Macri, houve uma reação espontânea e corporativa para colocar um freio ao ímpeto ultraliberal, mas desta vez, nessa renovada ofensiva reacionária, esse afã parece ter sido consumido todo no primeiro semestre. De agora em diante, cada batalha parece indecifrável. Mas vitimizar-se é dar mais carne às feras.
Nesta incômoda e inclusive dramática situação, será preciso encontrar a agulha no palheiro. Paciência e fraternidade para com os de baixo, até parir os novos símbolos de paz. Audácia e ferocidade contra os de cima, até vermos uma nova fuga de helicóptero da Casa Rosada. Ainda que, na verdade, não saibamos o que nos espera pela frente.
(*) Reportagem publicada originalmente em Revista Crisis.
(*) Tradução de Raquel Foresti.