Ultimamente, Nicanor Parra voltou à ideia inicial de chamar seu livro de Versos de Salón. Segundo ele, as críticas que têm recebido de seus amigos por conta dessa escolha é porque eles não entendem o tom irônico de sua poesia, e isso está incorporado, a seu ver, nesse título. Essa ironia, esse humor, está muito distante de ser mera frivolidade: é, na realidade, uma espécie de escudo protetor, uma carapaça que envolve a crítica social, a angústia e a dor em seus poemas. Dizem que Parra é um poeta humorístico, cômico, mas ele nega essa característica. Sim, ele usa a ironia e o humor (assim como Shakespeare e Dostoievski – que nem por isso são escritores humorísticos), mas o propósito de seus versos é essencialmente sério.
Miguel Sayago
Segundo Nicanor Parra, “o título de um livro de poesia é muito importante porque deve ser uma síntese do seu conteúdo e forma. Buscar um título é como escrever o maior e mais difícil de meus poemas. Para tanto, não ajo com a inteligência, como faria, por exemplo, ao procurar um lápis perdido; trato de conseguir um estado de ânimo propício para que as imagens poéticas venham e se combinem. Depois submeto essas imagens a uma crítica. Pensei em batizar esse livro de Nebulosa 1960, mas rejeitei esse nome porque me pareceu demasiado grande.
Seria como chamar de Napoleão o filho de uma lavadeira da periferia. Seria uma espécie de carreirismo, algo desproporcional, e me parece que o sentido de proporção é a essência de toda a crítica, a base do sentido do humor, da frivolidade”.
Parra sustenta que sua poesia reflete sua posição ambígua entre duas classes sociais, o proletariado e a burguesia: “É a poesia da classe média chilena, do pequeno burguês consciente. Eu me declaro marxista, mas não sou um comunista militante, e não sou porque estou ‘apoltronado’. Não sirvo para a luta, para comícios, nem para sair com um cartaz numa manifestação. Eu só posso lutar da minha poltrona de intelectual. Porém, meu amor está no proletariado”.
Parra quer que sua poesia seja afirmativa, concreta, alegre. No entanto, ele a considera decadente, de “clube literário”, e, a seu ver, até mesmo a sua poesia chamada “popular”, como La Cueca Larga, nada mais é do que um refinamento burguês. O ultimo verso de seu livro Poemas y Antipoemas é: “Mas não. A vida não tem sentido”.
O poeta considera que entre esse verso e os do livro que está para ser publicado há uma evolução. Ele não faz, porém, uma poesia sinceramente “popular”, ainda que haja uma inclinação para isso, embora a seu ver persista um abismo entre o que ele tem feito e o que realmente gostaria de fazer. Parra expõe a luta entre seu estado de intelectual burguês e sua profunda simpatia pelo proletariado como a luta entre o prazer e o dever. Segundo ele, sua vida são os livros, as viagens, a ciência; mas por outro lado percebe que seu dever é, inevitavelmente, se identificar com o proletariado, e todos os seus esforços levam a essa meta: “Ainda estou longe de dar um sentido à vida, mas estou me aproximando disso, e em meus últimos poemas há uma espécie de janela que se abre para essa posição que é crítica, mas que também diz algo”.
Pés descalços
“Meu pai foi um professor no ensino primário”, diz Nicanor Parra, “e minha mãe uma simples costureira. Meu avô paterno era um grande senhor de terras em Chillán, quase advogado, um rábula, que ganhou muito dinheiro nessa cidade. Meu pai herdou dele um relógio de ouro com uma corrente, um livro de leis encadernado em couro negro e uma mesa redonda de mogno”.
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Sentado aos pés de uma oliveira, no jardim de sua casa no bairro de La Reina, de onde se vê toda a cidade de Santiago, Nicanor Parra lembra-se de como era seu pai: “Era um doidivanas, um desajuizado. O pouco que herdou de meu avô acabou gastando em pouco tempo porque era aficionado por vinho, mulheres e música. Era poeta e cantor. Quando moço, trabalhou em um circo. Suponho que é por esse motivo que a família Parra toda tem uma tendência para o circo. Somos oito irmãos. Eu sou o único que nunca trabalhou em um circo. Um dos meus irmãos é hoje ‘homem-orquestra’ em um pobre circo da periferia: um indivíduo sombrio, melancólico, fechado, totalmente diferente de meu pai, que era expansivo e alegre”.
[Colagem feita por Parra em série sobre Copa do Mundo da Espanha de 1982]
“Quando meu pai se casou com minha mãe, meus avós consideraram algo ruim. Tiveram muitos filhos, e como o salário de professor de ensino primário era uma miséria, fomos por fim morar numa casinha na periferia de Chillán, perto do cemitério, num lugar chamado Villalegre. Vivíamos os dez em um cômodo. Da minha infância, que transcorreu de pés descalços, brincando com as crianças da periferia nos aterros, no barro, nasceu todo o sentido da morte, toda a dor, todo o protesto da minha poesia. E cada vez mais estou recuperando meu ressentimento de classe, que deve ser a força motriz de minha poesia. E como não seria? Todos os meus irmãos, exceto Violeta e eu, são indivíduos antissociais, que sequer completaram os estudos. Somente eu e ela alcançamos uma posição estável. Meu pai perdeu, juntamente com o relógio de ouro, a mesa e o livro de capa de couro negro, sua posição. Mas herdamos dele o amor incondicional pela música e pela poesia. Todos somos músicos, e quando nos reunimos tudo vira festa. Todos tocando violão.”
O carabinero Parra
O ressentimento do qual Parra fala tem poucos sinais externos. É um homem de poderosa inteligência e cultura, sorridente, afável, cheio de impulsos de generosidade para com as pessoas e cheio de simpatia pela vida. Entusiasta de boa conversa regada a um bom vinho, é também um estudioso da matemática e um grande trabalhador da poesia. É atualmente [1960] professor de mecânica na Escola de Engenharia e no Instituto Pedagógico da Universidad de Chile. Seus poemas têm sido traduzidos para o inglês e para o sueco, publicados nos EUA pela editora CityLights, que também edita poemas de Gregory Corso, Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti.
O caminho feito por Nicanor Parra, saindo de uma casinha na periferia de Chillán e chegando a professor universitário e poeta, é permeado por uma história de força de vontade e de uma vocação abrasadora, lutando para achar seu lugar no mundo.
Quando bem jovem, no quinto ano do curso de humanidades no Liceo de Chillán, fugiu de casa e foi para Santiago. Estava sempre em pé de guerra com a família, especialmente com sua mãe, que não entendia por que ele queria tanto estudar ao invés de trabalhar o mais rápido possível para assim “ajudar na casa”. Mas o jovem Parra tinha um sonho antigo e que não podia afastar de sua imaginação: queria estudar para ser oficial dos Carabineros de Chile. O uniforme usado por essa força policial lhe parecia maravilhoso, e o curso para ingressar era rápido.
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Desenho orginal de Nicanor Parra reproduzido em edição especial sobre o autor na revista The Clinic
Antes de sair de sua cidade natal, porém, sua verve poética já dava sinais. Tinha verdadeiro frenesi pelos versos de Alejandro Flores, a quem escutou declamar uma vez, da galeria, no teatro de Chillán. Mais tarde, o professor de desenho de Parra presenteou-o com um livro de poemas escrito por Magallanes Moure, que lhe influenciou demais.
Na periferia de Chillán existia um armazém chamado El Toro, cuja proprietária era amiga de Parra, e com quem travava grandes conversas; falava de seu desejo de estudar, algo incomum segundo ela. Mas apesar dessas ideias, ela o respeitava, como se aquele menino tivesse poderes até então desconhecidos. Tanto que, quando Nicanor decidiu fugir após uma discussão com seus pais, foi essa senhora quem lhe emprestou o dinheiro para uma passagem de ida para Santiago.
Na capital do Chile entrou em contato com Gonzalo Latorre, que havia conhecido em uma convenção de professores primários em Chillán. Ele conseguiu para Parra uma bolsa de estudos no Internado Barros Arana, uma das instituições de ensino mais prestigiadas do país. Lá, Amador Alcayaga, então reitor da escola, o tomou sob sua proteção. “Suponho”, diz Parra, “que o reitor me protegeu porque acreditava que deve ter visto em mim uma espécie de provinciano progressista. Não se deu conta que eu não passava de mais uma alma perdida, uma projeção do caos”.
Depois de completar seus estudos secundários, permaneceu no Internado como inspetor de alunos. Ali sua vocação poética se consolidou em meio à relação com seus companheiros de turma Luis Oyarzún, Carlos Pedraza e Jorge Millas. Juntos publicaram a Revista Nueva, com o subtítulo “caderno trimestral de poesia e ensaios”. De acordo com Parra, era todo escrito em letras minúsculas para revolucionar: “Eu nasci para a poesia naquela época, especialmente lendo Neruda, que me fez tomar consciência do fenômeno poético”.
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Na época de inspetor do Internado, Nicanor resolveu se matricular na universidade, esquecendo a antiga ambição de envergar o belo uniforme dos Carabineros. Entretanto, não se contentou em fazer apenas um curso: “Matriculei-me em leis, engenharia, licenciatura em matemática e em inglês. Assisti a apenas uma aula de leis, e a experiência dessa aula foi tão sórdida, com a sala lotada de alunos que nem conseguia ver o professor, que não voltei. Na engenharia fui vítima de professores pedantes e muito arrogantes, que pediam aos alunos que resolvessem, em 40 minutos, problemas tradicionalmente insolúveis. Também abandonei a engenharia. Em pouco tempo, saí também do inglês porque tenho a língua presa e meus colegas de sala riam da minha pronúncia. Mas persisti na licenciatura em matemática. Estudei matemática porque não a entendia como [entendia] as matérias das humanas, e, como sempre fui um soberbo, não me conformava com que esse aspecto da cultura me parecesse proibido”.
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Mulheres vistosas
Em 1937, Parra publicou seu primeiro livro, Cancionero sin Nombre, muito influenciado pela obra de Federico García Lorca. Neruda, que conhecia esses poemas, escreveu a contracapa do livro. Parra diz que, em todos os sentidos, tem uma grande dívida para com Pablo Neruda. Graças a ele Parra nasceu para a poesia.
[Capa do livro de Parra, de 2004: releitura de Shakespeare]
Antonio Machado morreu em 1939, e um grupo de intelectuais organizou uma espécie de sarau póstumo em sua homenagem no Teatro Municipal de Santiago. Procuraram Neruda para que escrevesse uma elegia em memória do escritor espanhol a ser recitada na ocasião. Entretanto, o famoso poeta se recusou, justificando que “a pessoa mais indicada para escrever é Nicanor Parra”. E assim foi. Parra escreveu a elegia, que foi recitada no Municipal por Inés Moreno e María Maluenda.
Entre seus livros Cancionero sin Nombre (1937) e Poemas y Antipoemas (1954), Nicanor Parra não publicou nenhum outro. Porém não esteve em silêncio, já que várias revistas da América Latina e algumas antologias publicavam seus versos. Foi a época de sua graduação em matemática. Esteve por dois anos nos Estados Unidos, onde estudou física atômica, e outros dois em Oxford, estudando cosmologia com o astrofísico e matemático britânico [Edward Arthur] Milne, colaborador de [Arthur Stanley] Eddington e de [James Hopwood] Jeans. Dividiu seu tempo entre os fundamentos da mecânica e a poesia inglesa contemporânea.
Em Oxford, conheceu uma garota sueca, Inga Palmen, que estava de férias na Inglaterra: “Eu tinha à época três filhos, mas já não era casado. Sempre gostei das mulheres altas, loiras, vistosas. Inga era para mim a menina mais linda que já havia visto. E me casei com ela em Londres. Eu sou sentimentalmente caótico e, apesar disso, Inga sempre esteve ao meu lado, me apoiando. Ela é a pessoa com quem conto nessa vida, que me entende e sabe me perdoar. Atualmente está na Suécia em férias, mas estou esperando por ela”.
Em 1957, Nicanor Parra fez uma viagem de sete meses pela Rússia, China, Áustria, Suécia e Itália. Considera esse tour como um ponto de partida para ele, uma experiência que mudou a visão que tinha do mundo e das pessoas.
Parra afirma que o país mais extraordinário que visitou foi a China: “São alegres, de uma polidez incrível, com muita fé no futuro do mundo. A janela que se abriu para a luz em minha poesia devo a essa experiência na China”.
“Mas, o país mais estranho que conheci foi a Suécia. Não por si mesmo, mas especialmente pelos costumes e pelas relações amorosas entre homens e mulheres. As mulheres vivem uma liberdade erótica completa, que para mim é impossível entender em sua totalidade, apesar de que, se usar a razão, entendo. É como se o sexo não tivesse nenhuma importância para elas, que buscam o prazer sem inibições e, se possível, sem amarras de ordem sentimental. É certo que falo de um ambiente específico, extremamente liberal, um mundo como o dos beatniks, dos angry young men, e imagino que exista, lá na Suécia, como em todas as partes, ambientes com costumes muito diferentes. Porém, a liberdade sexual dos países nórdicos é algo… bem, que não podemos sequer imaginar acontecendo aqui no Chile. Eu, que não sou nenhum santo, lá me sentia um verdadeiro puritano.”
Justiça para De Rokha
Sobre o livro atual, que espera ser batizado para ser impresso, Nicanor Parra diz que “em minha poesia atual, trato de opor à voz impostada da poesia tradicional, e até mesmo a de alguns poetas contemporâneos, uma voz natural, a voz de conversação diária. Essa é a eterna luta dos que buscam novas formas e temas contra a posição acadêmica formal, que tudo se renove e que mude de rosto de geração em geração, mas que acaba permanecendo como acadêmica. Apenas usando a linguagem falada pode-se alcançar as pessoas e fazer assim uma poesia progressista”.
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“Uma das características da minha poesia é que a unidade essencial não é a palavra, nem a estrofe, nem a frase, que sofre as inflexões do ritmo. Minha unidade é o verso, que na minha poesia aparece isolado, como um monte de pedras que são jogadas no leitor. Essa é a razão das frequentes enumerações que eu emprego, como no poema El Manual del Pequeño Burgués, que faz parte desse novo livro.”
[Nicanor e a irmã Violeta Parra, cantora e compositora]
Sobre a pergunta da revista Ercilla a respeito do Premio Nacional de Literatura, Nicanor Parra responde: “Pena que não se pode ganhar o prêmio repetidamente, e se tal pudesse, considero que o prêmio corresponderia a Pablo Neruda. Cada um de seus livros é uma revelação. É um poeta inesperado e inextinguível. É o maior poeta do século”.
“Entretanto, se fosse para premiar o conjunto da obra, premiaria Barrenechea. Pela profundidade filosófica, Humberto Díaz Casanueva. Juvencio Valle representa, por outro lado, a poesia vegetal dos bosques do sul. Mas eu me inclino a dar o prêmio a Pablo de Rokha. Perdoo todos os seus delírios e considero importante fazer justiça a ele. Ele está para as letras castelhanas assim como [Ezra] Pound para as inglesas. Destruiu o edifício pacato da poesia anterior com os seus Gemidos (1912), preparando o terreno para que semeassem futuramente Neruda, Huidobro, Anguita, Gonzalo Rojas e eu mesmo.”
“Dentre tudo o que se fala dele como homem, existe alguma verdade, mas também muita mentira. Lembro-me do meu primeiro contato com De Rokha, em Chillán. Pediu que escrevesse um poema para sua revista Multitud. Eu me recusei a fazê-lo porque essa revista vivia atacando um poeta que sempre foi muito gentil comigo: Pablo Neruda. Ele disse que não aceitava poemas com condições, mas que respeitava minha posição, e ficamos assim muito amigos.”
De sua irmã, a folclorista Violeta Parra, diz que é como uma espécie de irmã siamesa.
27 de julho de 1960.
Publicado originalmente na revista Ercilla
Tradução: Samuel Maggi Vidilli