Em 1986, a então estudante de direito Bejan Matur, curda alevita, foi presa junto com outros 200 colegas por conspiração em Ancara, capital da Turquia. À época com 18 anos, Bejan passou meses sozinha, em uma cela pequena, escura, sem direito a defesa, onde foi torturada. “A poesia salvou minha vida. Eu declamava para me consolar dentro daquela sepultura, ouvia palavras que eram como diamantes na escuridão”, disse com voz pesada a Opera Mundi.
O que abre o caminho é escuridão
Curve-se num poço |
Assim que foi libertada, Bejan passou a escrever compulsivamente em cadernos de anotações. Centenas deles. Despejou ali uma enxurrada de versos líricos que expressavam toda sua dor pelo encarceramento, alterada, como uma “lunática”. O destino que ela deu às anotações, porém, foi surpreendente. Ou, como ela classifica, “de uma enorme crueldade”.
“Eu tinha uma fita de Maria Callas. Escolhi uma aria, provavelmente de Puccini, e ateei fogo em tudo. Enquanto os cadernos queimavam, as palavras murchavam, eu me perguntava: tem certeza?”, contou. A resposta reassegurava sua intenção. “Não seja sensível agora. Esse é um momento de ruptura da sua vida. Você precisa ir mais longe e precisa se livrar disso para ser livre.”
Hoje, quase 30 anos depois de atear fogo às suas anotações, e de mergulhar em uma arqueologia pessoal, Bejan tornou-se a principal poeta da Turquia, referendada pela crítica local e internacional pela originalidade de sua obra. Em linhas gerais, a poética de Bejan apresenta uma ontologia do alevismo curdo, calcada no xamanismo e na exaltação do feminino. Com isso, ela apresenta uma contranarrativa ao patriarcado turco.
Roberto Almeida/Opera Mundi
A escritora Bejan Matur
“Se você quer me entender, precisa entender de onde vim. Minha geografia tem uma memória”, ela sublinha. “Eu consigo sentir nas pedras, no ar, os traços da civilização hitita. Brincava em torno de estátuas inacabadas e cemitérios. Se você é um artista e abre o coração, a alma, consegue ouvir as elegias que vêm com o vento. Tudo está no ar.”
Os poemas abaixo, como apresenta Bejan, são como uma “escultura” a partir do material coletado através do contato com sua geografia emocional e com mulheres curdas alevitas da vila de Maksutusagi, perto de Kahramanmaraş, no sudeste da Turquia. “Minha poesia é muito próxima de minha cultura. Não uso terminologia folclórica, ou política. Ela é muito antropológica”, diz a autora.
Elegias e Estado
Bejan chegou rapidamente à fama na Turquia com seu primeiro livro, Winds Howl Through the Mansions (sem tradução para o português), publicado em 1996, por destoar fortemente da poesia contemporânea turca. Em vez de atacar frontalmente a política local, como fizera em seus cadernos queimados, a autora optou por reencontrar sua individualidade em uma jornada poética inédita para os moldes locais.
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“Como uma poeta, quando eu ando pelos lugares, tudo se torna palavra. Pedras tornam-se palavras, o vento torna-se palavra, o rio é um poema. Eu consigo sentir isso. Um poeta, para mim, é alguém que ouve as palavras da natureza. Ouvir as palavras assim tem uma força política. Você precisa estar aberto”, afirma Bejan.
Além da aproximação com a natureza, a autora refez sua trajetória no alevismo, um braço do islã xiita. “A diferença é que não rezamos, não jejuamos, temos nosso próprio ritual, o Cem (que se pronuncia djem). Cem quer dizer encontro. As mulheres dançam, bebem vinho, nossa sociedade é igualitária. Mulheres são xamãs, minha mãe é uma xamã”, explica.
O sonho da Terra
Em sua solidão o céu noturno
Se a Estrela Polar se mover um segundo de seu lugar, |
O xamanismo local, como afirma Bejan, tem uma tradição oral muito forte e uma poética particular. O dia a dia das mulheres alevitas curdas é ilustrado por elegias. Essa forma poética, terna e triste, é aprimorada com o tempo, com os cantos diários, para serem apresentadas durante funerais. “Durante a rotina da casa, minha mãe dizia elegias sobre meu pai – que ainda está vivo. Mesmo assim, ela estava sempre preparando elegias para ele. É uma tradição poética oral que eu cresci vendo”, conta a autora.
Para Bejan, a força das mulheres está na autenticidade. Afastadas do jugo do Estado turco, elas mantiveram raízes sólidas em uma frequência diferente da assertividade masculina. “Quando falo com mulheres, o curdo é mais puro, tem alma. Quando falo com minha mãe eu sinto a força poética; com meu pai é ao contrário, é racionalizado”, ilustra Bejan. “Eu me sinto como essas mulheres, em ruptura existencial com a narrativa do Estado.”
Política, sem terminologia política
Mesmo sem narrar em seus poemas o conflito histórico entre o Estado turco e as minorias curdas, Bejan diz estar ciente de seu papel como sujeito político. “Como curda nascida na Turquia, você tem de ser político, não é opção”, afirma a autora. “Em nossa região, não tem como separar as coisas. Como artista, como poeta, se está consciente dos seus sentimentos e da sua consciência, você tem de ser político”, ressalta.
“Isso não quer dizer que eu use terminologia política na minha poesia. Ao mesmo tempo, ela é extremamente política. Posso falar de direitos políticos, direitos humanos, dizer algo genuíno, real, e assim eu acredito que você possa mudar a vida de um povo”, ela emenda.
Bejan alinha assim sua escolha poética, e reservou a prosa política para artigos de jornal. De 2005 a 2012, a autora manteve uma coluna no jornal conservador Zaman, que ela justifica como “uma escolha proposital, para atingir um outro público com novas ideias”. Em outra vereda, ela escreveu Looking Behind the Mountain, um livro de entrevistas com guerrilheiros do PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão.
Kutti Revathi |
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A “aventura” pelo jornalismo, como ela coloca, resultou em uma tentativa de aproximação do governo turco e tornou-a uma celebridade, com milhares de seguidores no Twitter. Hoje com oito livros publicados, ela decidiu manter-se alheia da política diária, que a consumia a ponto de desviá-la da poesia. “Mas fui a segunda pessoa na Turquia a dizer na TV, em rede nacional, que tem origem curda”, orgulha-se.
Ao se despedir, Bejan disse que pretende continuar escrevendo. Com uma base em Istanbul, prefere continuar nômade, viajando o mundo. Se sua poesia será lida daqui a 20 anos? “Eu não penso sobre a durabilidade da poesia, mas eu a sinto. Quando você cria poesia genuína, ela vai durar anos. Eu acredito nisso”, oferta.
(Traduções dos poemas por Ana Amália Alves, a partir da versão em inglês de Ruth Christie e Selçuk Berilgen, gentilmente cedida a Opera Mundi. “O que abre o caminho é escuridão” foi publicado originalmente na revista Polichinello.)