Em 2009, quando exibiu o filme A Fuga da Mulher Gorila (codirigido por Marina Meliande) no Festival de Locarno, na Suíça, o cineasta Felipe Bragança conversou com curadores que pouco sabiam o que estava sendo produzido de novo no Brasil. “As pessoas só conheciam Walter Salles e Fernando Meirelles. A gente ficava falando que havia outras coisas legais, que não éramos ‘gênios solitários’”, brinca Felipe. Seis anos depois, uma nova geração de cineastas brasileiros já conquistou terreno considerável nas seleções de festivais internacionais.
Só em 2015, o Brasil já levou um filme para Sundance (Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, vencedor de um prêmio especial do júri pelo trabalho de suas atrizes) — festival considerado o evento mais importante dos EUA para filmes independentes —, 14 títulos para o Festival de Berlim (Alemanha) e outros 18 com produção ou coprodução brasileira para o Festival de Roterdã (Holanda).
Roberto Borello/Flickr/CC
Último brasileiro que concorreu em Cannes foi 'Na Estrada' (2012); mas, para curador holandês, não há razão para 'complexo de inferioridade'
A inserção brasileira nesse cenário tem sido maior em festivais que valorizam obras que tragam alguma experimentação de linguagem e/ou que sejam realizadas por jovens diretores, a exemplo do evento suíço, que exibiu Ventos de Agosto, do pernambucano Gabriel Mascaro, em sua competição oficial de 2014, e Roterdã, que no mesmo ano selecionou Casa Grande, do carioca Fellipe Barbosa, e Riocorrente, do paulista Paulo Sacramento, para a sua mostra principal. Outros espaços em que há uma boa abertura para o cinema nacional são as mostras paralelas de festivais como o de Cannes e Berlim, que costumam abrigar trabalhos mais inovadores e arriscados.
Por outro lado, a trinca dos festivais mais tradicionais da Europa (Cannes, Berlim e Veneza) tem dado pouca atenção ao cinema brasileiro em suas competições oficiais. Os últimos filmes do país que concorreram pelo prêmio principal em cada um desses eventos foram realizados em coprodução com outros países e dirigidos por nomes que já haviam obtido algum tipo de reconhecimento internacional: Fernando Meirelles (O Jardineiro Fiel, Veneza 2005), Walter Salles (Na Estrada, Cannes 2012) e Karim Aïnouz (Praia do Futuro, Berlim 2014).
Assista à lista de filmes reconhecidos em festivais, que estiveram, estão, ou estarão em cartaz em 2015:
“Acho que há duas questões que se misturam quando tratamos desse assunto. Uma delas é que, na maior parte das vezes, os filmes que participam das competições dos principais festivais são feitos em coproduções com países europeus, e isso ainda é mais raro para filmes brasileiros, em comparação a trabalhos argentinos, chilenos e mexicanos, por exemplo. Outra questão, que é específica do ambiente da produção brasileira, tem a ver com um abismo entre uma produção radicalmente independente — que gera filmes muito interessantes, mas que os festivais maiores não costumam colocar na competição — e um cinema que começa a aventar resultados de bilheteria e que em geral também não realiza os filmes que vão para festivais internacionais”, pontua Eduardo Valente, assessor internacional da Ancine (Agência Nacional de Cinema).
Seca dos anos noventa
Do ponto de vista histórico, um período importante para entender o atual estágio do cinema brasileiro é o início dos anos 90, época em que o governo Collor (1990-1992) fechou a Embrafilme, o Concine e o Ministério da Cultura (transformado em secretaria ligada à Presidência) e acabou com as leis de incentivo, o que praticamente pôs um fim à produção de longas-metragens nacionais — em 1992, apenas um filme brasileiro (A Grande Arte, de Walter Salles) foi lançado comercialmente.
“Desde os anos 80, o Brasil não tinha um momento de formação de uma geração de cineastas com quantidade consistente. Hoje, temos um número grande de diretores com uma formação parecida, que cresceram ao longo dos anos 80 e 90 e começaram a filmar nos anos 2000”, lembra Felipe Bragança.
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Entre a segunda metade dos anos 90, quando houve a retomada da produção nacional em maior número, e o momento atual, alguns diretores brasileiros ganharam renome internacional. Em 2004, Cidade de Deus foi indicado a quatro prêmios Oscar, incluindo a categoria de melhor direção para Fernando Meirelles. Central do Brasil, de Walter Salles, em 1998, e Tropa de Elite, de José Padilha, em 2008, receberam o Urso de Ouro, prêmio máximo do Festival de Berlim. Depois disso, porém, Padilha optou por um caminho mais comercial ao filmar Robocop nos EUA, e Salles e Meirelles tiveram seus últimos trabalhos de ficção (Na Estrada e 360, respectivamente) recebidos com pouco entusiasmo no exterior.
“Nossos diretores de cacife não estão fazendo grandes filmes e eventualmente entram [nas competições de festivais] porque têm este cacife. Já os cineastas que estão surgindo nos últimos oito ou nove anos estão nessa fase de sair de lugar nenhum para algum lugar. Isso eu acho que eles alcançaram, pois estão viajando, entrando em mostras paralelas e eventualmente ganhando prêmios em festivais menores. Acho que vai ser um curso natural das coisas adentrar esse filet mignon dos festivais internacionais, mas o momento é de firmar uma nova geração de autores”, opina Cleber Eduardo, curador da Mostra de Cinema de Tiradentes. O evento se tornou símbolo do acolhimento ao jovem cinema independente brasileiro, sobretudo a partir de 2008, ano em que foi criada a Mostra Aurora (seção competitiva para realizadores com até três longas-metragens).
Nova geração
Helvécio Marins Jr., Felipe Bragança, Clarissa Campolina, Marina Meliande, Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro, Adirley Queirós, Larissa Figueiredo, Fellipe Barbosa, Júlia Murat, Cláudio Marques, Marília Hughes, Fernando Coimbra, André Novais Oliveira, Allan Ribeiro, Marco Dutra, Juliana Rojas, Ticiana Augusto Lima, Guto Parente… A lista, que é bem maior, traz nomes de diretores que realizaram o primeiro longa-metragem nos últimos oito anos e circularam por importantes festivais nacionais e internacionais. Devido à baixa inserção dessas obras no circuito comercial, porém, é provável que vários dos cineastas listados sejam ainda desconhecidos do leitor.
“Há uma diversidade interessante no cinema brasileiro, que é maior do que aquela que existia há dez anos, por exemplo. Algo importante que aconteceu nesse período é que uma produção fora de estados tradicionais, como Rio de Janeiro e São Paulo, se firmou em outros lugares, a exemplo de Minas Gerais e Pernambuco, e trouxe filmes interessantes”, analisa o holandês Gerwin Tamsma, programador do Festival de Roterdã, evento que tem como característica a valorização de jovens realizadores, e que talvez por isso tenha se tornado espaço importante para os filmes brasileiros.
Assista à lista de longas-metragens brasileiros premiados recentemente em festivais internacionais:
O filme recente dessa geração que mais obteve repercussão foi O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho. Além de ter recebido ótimas críticas e prêmios em festivais como o de Roterdã (melhor filme para a crítica internacional), o primeiro longa-metragem do cineasta pernambucano chegou a quase 100 mil espectadores, número que seria um fracasso para qualquer filme comercial, mas que é considerado um sucesso para um trabalho independente, com pouca verba para divulgação e um espaço restrito no sistema de exibição.
“O Som ao Redor é uma exceção por ser um filme que propõe uma linguagem inovadora e contém um apelo comercial. Acho que o cinema independente brasileiro de hoje vem tendo mais espaço para a experimentação. Festivais como Cannes e Berlim têm na competição, de modo geral, um padrão que visa o mercado internacional. Eu não vejo como algo negativo o fato de não entrar nessas competições oficiais, pois isso mostra que o Brasil está buscando algo diferente, que tem muito mais a ver com a nossa própria cultura, até porque temos um modo de ser que não é o mesmo que o dos EUA e Europa”, diz Larissa Figueiredo, cineasta brasiliense radicada no Paraná que exibiu O Touro, seu primeiro longa-metragem, no Festival de Roterdã deste ano.
Filmes “importantes”
A opinião de Larissa levanta uma questão importante: até que ponto, no atual estágio dessa geração do cinema brasileiro, é importante uma inserção maior nas competições dos maiores festivais do mundo? Trazendo um olhar estrangeiro, o holandês Gerwin Tamsma, programador do Festival de Roterdã, acredita que essa preocupação é supervalorizada e acaba colocando a qualidade dos filmes em segundo plano.
“Há um conceito equivocado sobre a relação entre qualidade e grandes competições. Berlim, Cannes e Veneza tendem a entender por filmes importantes aqueles que têm um certo valor em termos de audiência. Meu problema aqui não é com a ideia de público, mas com o conceito de ‘importante’. De todo modo, o Brasil é um produtor de filmes mundialmente relevante e não há motivos para ter um complexo de inferioridade só porque os curadores de Cannes e Veneza não têm achado no momento que haja nenhum filme ‘importante’ o suficiente para ser selecionado”, opina Gerwin.
Roberto Borello/Flickr/CC
Sem muito espaço nas competições oficiais, filmes brasileiros têm marcado presença com muitos títulos em mostras paralelas nos festivais
Já Cleber Eduardo, curador da Mostra de Tiradentes, afirma que a ocupação dos espaços principais dos grandes festivais passa por um amadurecimento da obra dos novos cineastas brasileiros, mas acredita que os filmes não precisam se moldar àquilo que é considerado importante pelos eventos internacionais.
“O que a gente não pode é fazer uma pressão em cima dos filmes para que eles se tornem mais comerciais para entrar em festivais internacionais, porque acabaríamos transformando os festivais em uma espécie de multiplex do cinema de autor. Aí eu sou contra. Eu prefiro que os filmes não entrem nos festivais e carreguem uma expressão dos seus cineastas. Isto é o principal e o primordial. Se os festivais querem abrir espaços para essas autoralidades mais radicais, ótimo. Agora, o que eu acho é que as autoralidades não podem se domesticar para criar uma espécie de cinema internacional standard, porque isso já existe, e acho que o Brasil não tem muito a contribuir com ele”, explica.
Continuidade
A trajetória de Felipe Bragança, que codirigiu seus primeiros longas com Marina Meliande, serve para entender melhor a lógica que rege as escolhas dos grandes festivais. Em 2009, A Fuga da Mulher Gorila tentou uma vaga no Festival de Cannes. Mesmo não sendo selecionada, a obra chamou atenção de um dos curadores do evento francês, que o aconselhou a inscrever o trabalho no Festival de Locarno. A dica foi seguida e o filme recebeu o aval suíço. No ano seguinte, o novo trabalho de Felipe, A Alegria, acabou sendo exibido na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela de Cannes.
Como não dirigiu nenhum outro filme depois de 2010, Felipe terá a sua projeção internacional testada com o seu próximo trabalho, que deve ser rodado esse ano e será a sua primeira incursão solo na direção de longas-metragens. Durante este hiato na direção, ele trabalhou, entre outros projetos, como roteirista de Praia do Futuro, de Karim Aïnouz.
Comparativamente, porém, a possibilidade atual de se realizar filmes no Brasil com boa frequência é muito maior do que em décadas anteriores. Os editais e leis de incentivo funcionam e garantem, por exemplo, que Pernambuco produza filmes regularmente e seja considerado por boa parte da crítica especializada como o principal polo de qualidade cinematográfica do país nos dias de hoje.
Outro fator importante foi a redução de custos trazida pelo cinema digital, que permitiu que muitos filmes fossem realizados com orçamentos menores e até sem patrocínio ou ajuda de editais, como é comum acontecer com trabalhos exibidos na Mostra de Cinema de Tiradentes.
Hoje na Ancine, Eduardo Valente tem uma trajetória anterior que mostra que os grandes festivais internacionais valorizam a continuidade de produção dos diretores. Como cineasta, ele levou os seus três curtas-metragens e um longa-metragem (No Meu Lugar) para diferentes mostras do Festival de Cannes, onde foi premiado já com o primeiro trabalho, Um Sol Alaranjado, na seção de filmes de escola Cinéfondation.
“É necessário que exista seguimento na produção de filmes, e de preferência em um tempo que não seja muito longo. Outro ponto é que deve haver interesse do cineasta em fazer filmes que ganhem um tamanho que tem a ver com a ambição de linguagem e de dramaturgia, isto pensando de uma maneira internacional. Essa escalada em ambição é uma coisa difícil de qualificar especificamente, mas se assistir aos filmes você entende porque o festival acha que este é um filme para a competição, e não para este ou aquele lugar. Não tem tanto a ver com orçamento, mas com amadurecimento da linguagem do cineasta”, opina Eduardo.
Inserção à vista
Entre as produções independentes dessa geração que obtiveram algum tipo de destaque no circuito de festivais, aquela que chegou mais recentemente ao circuito comercial foi Branco Sai, Preto Fica. Vencedor do último Festival de Brasília, o trabalho traz peculiaridades tanto em termos narrativos e estéticos, por combinar elementos do documentário tradicional e da ficção científica, quanto em relação ao ponto de vista lançado pelo diretor Adirley Queirós, ex-jogador de futebol que entrou na área de cinema já perto dos 30 anos de idade e, desde então, construiu, através de seus filmes, um discurso de afirmação cultural de Ceilândia (DF) em oposição à opressão sentida pelos moradores da cidade-satélite de Brasília em relação à capital federal.
Lançado pela Vitrine Filmes, distribuidora que tem como principal marca a aposta em filmes brasileiros com pretensões autorais, Branco Sai, Preto Fica estreou em nove capitais e em 14 salas. Com pequenas variações, este número é representativo do pequeno espaço que as produções do tipo vêm conseguindo obter nos cinemas do país e mostra o quão fechado o circuito de exibição tem se mostrado.
“Eu não acho que participar dos festivais de Berlim e de Roterdã ou ganhar um prêmio em San Sebastián altere qualquer mecanismo de distribuição e exibição no Brasil. As premiações não ajudam no nosso mercado, mas podem resultar em uma inserção dos cineastas na Europa, que é o principal mercado para nossos filmes autorais. Elas também trazem um componente positivo para a imagem de um cinema brasileiro autoral mais jovem, que é o perfil do cinema brasileiro de hoje que tem se inserido nos festivais internacionais”, analisa Cleber Eduardo.
Assim, uma valorização maior desses novos cineastas brasileiros no exterior parece mais provável do que uma maior acolhida deles pelo público do país fora do circuito de festivais. O programador holandês Gerwin Tamsma acredita que “alguns dos jovens cineastas brasileiros que começaram a carreira participando de festivais como Roterdã e Locarno chegarão a Cannes em algum momento”.
Integrante dessa nova geração que vem chamando a atenção de curadores internacionais, Felipe Bragança é um dos habilitados para obter tal reconhecimento. Ele alerta, porém, que o caminho a ser trilhado em direção ao amadurecimento ainda é grande.
“O grande salto é perceber se essa geração vai conseguir se manter nesse território autoral firme e não se perder no caminho, e ao mesmo tempo aceitar o fato de que é necessário continuar investigando, evoluindo e criando”, opina Felipe.
“Em 2009 eu falei que teríamos um monte de filmes entrando nas mostras paralelas dos festivais internacionais, e isso aconteceu. Hoje eu acredito que o mesmo deve acontecer em relação às competições desses eventos se essa geração começar a fazer filmes com um pouco mais de tempo para criar, não necessariamente com muito dinheiro. O que aconteceria se o cara que fez um filme com uma equipe de quatro pessoas durante dez dias, e mesmo assim fez um trabalho incrível, pudesse ficar três meses naquele processo? Acho que estamos precisando desse salto no sentido de se respeitar o cinema autoral brasileiro dos anos 2000”, arremata.
* Adriano Garrett é editor do site Cine Festivais