A retomada das relações diplomáticas entre EUA e Cuba, anunciada em dezembro de 2014, tornou ainda mais atuais as discussões levantadas pelo filme Retorno a Ítaca, dirigido pelo francês Laurent Cantet, que está em cartaz nos cinemas brasileiros.
As restrições impostas pelo governo dos EUA aos cubanos, que têm como principal ponto o ainda não revogado embargo econômico, trouxeram graves consequências ao país caribenho, notadamente depois da dissolução da União Soviética, principal parceira comercial de Cuba durante um período considerável.
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Divulgação
Filme 'Retrona a Ítaca', dirigido pelo francês Laurent Cantet, está em cartaz nos cinemas brasileiros
Os anos noventa, especialmente, foram de grave restrição material para os cubanos. É nessa época que Amadeo (Nestor Jiménez), protagonista do filme de Cantet, deixou Cuba para ir morar na Espanha. Dezesseis anos depois, ele volta à terra natal e reencontra velhos amigos. A história se concentra em um período de menos de 24 horas, entre o início da tarde e o amanhecer do dia seguinte, no terraço de um prédio à beira-mar em Havana.
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O grupo de personagens forma uma espécie de microcosmo de uma parcela mais envelhecida da sociedade cubana. Além de Amadeo, há Rafa (Fernando Hechevarria), um pintor frustrado que se contenta em produzir obras que não lhe agradam para obter sustento; Tanía (Isabel Santos), uma médica que lamenta a partida dos filhos para os EUA; Eddy (Jorge Perugorría), que enriqueceu realizando atividades ilegais; e Aldo (Pedro Julio Díaz Ferran), que trabalha em uma oficina automotiva e tem um filho disposto a sair do país.
Assim como em Entre os Muros da Escola, que também foi filmado prioritariamente em um único ambiente — a sala de aula —, Cantet mostra, em Retorno a Ítaca, talento para realizar enquadramentos e transições que favorecem o tom naturalista pretendido. Soma-se a isso um elenco homogeneamente talentoso e um roteiro com diálogos inspirados, que foi baseado em um conto do escritor cubano Leonardo Padura.
Assista ao trailer legendado de 'Retorno a Ítaca':
Atração e repulsa
Como bem notou o cineasta Eduardo Coutinho em seu documentário As Canções, as músicas são capazes de suscitar uma rica gama de memórias e sentimentos em cada pessoa. No caso de Retorno a Ítaca, já na abertura há uma canção que demonstra a euforia que os amigos sentem devido ao reencontro. Aos poucos, este estado de espírito dá lugar às mágoas, às frustrações, aos questionamentos guardados durante anos por cada um daqueles indivíduos, e a trilha sonora ouvida por eles também pontua essas mudanças de humor.
Há, no filme, um evidente tom crítico em relação ao regime dos Castro. A crença nos ideais do regime socialista, outrora compartilhada pelos personagens, dá lugar ao ceticismo e a sobrevivências frustradas. Por outro lado, existe também um apego sentimental evidente em relação à terra natal, como pode ser visto na gozação dos homens ao time de beisebol local ou no desejo de Amadeo de recuperar, em Cuba, a inspiração criativa de escritor perdida na Europa.
Os personagens de Retorno a Ítaca sentem, ao mesmo tempo, atração e repulsa pela ilha. É uma relação diferente, por exemplo, do que a que possui a geração posterior — representada no filme pelo filho de Aldo —, que parece trazer apenas a frustração consigo, e não mais as esperanças de seus pais no regime socialista.
Com as expectativas de um novo rumo para Cuba a partir das perspectivas abertas pela retomada de relações diplomáticas com os EUA, é possível que esses sentimentos, tão bem captados por Laurent Cantet neste filme, se modifiquem ainda mais em um futuro próximo.
* Adriano Garrett é editor do site Cine Festivais