Prezados Senhores,
Meu nome é Ana Luisa Martins. Sou filha de Luís Martins e parente próxima de Tarsila do Amaral. Amigos norte-americanos fizeram a gentileza de me remeter um exemplar do catálogo da exposição em cartaz no MOMA, Tarsila do Amaral – Inventing Modern Art in Brazil, e, como autora listada na Bibliografia Selecionada (Ana Luisa Martins – Aí Vai Meu Coração – as cartas de Tarsila do Amaral e Anna Maria Martins para Luis Martins), penso ser o meu dever comunicar-lhes que fiquei estupefata ao notar um grave equívoco, uma falha crítica na cronologia da vida de Tarsila.
Por que o nome de Luís Martins, quarto parceiro de Tarsila e seu companheiro por quase duas décadas, foi omitido da cronologia da artista? Por que não foi mencionada a relação pouco convencional dos dois, prova do compromisso de Tarsila não apenas com a arte moderna, mas também com novas experiências de vida e regras sociais? Eu tenho uma ligação sentimental com essas pessoas, mas fiquei pasma como autora, ao ver que o livro acima citado, no qual a relação dos dois é descrita em detalhes, apesar de estar na lista de vocês, não foi lido por ninguém da equipe da curadoria.
Como sabem críticos de arte, curadores e pesquisadores brasileiros, Luís e Tarsila viveram junto por mais de 18 anos, de 1933 a 1952. Luís foi o último e mais perene companheiro da artista e, segundo parentes e amigos do casal que entrevistei para o livro, o grande amor de Tarsila. Luís Martins foi também um respeitado crítico de arte brasileiro, escritor e jornalista que escreveu crônicas diárias para o jornal O Estado de São Paulo por 32 anos, até sua morte, em 1981. O Centro de Estudos Luís Martins, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, foi nomeado em sua homenagem.
Eu posso até respeitar a escolha da curadoria, de focar a exposição nos primeiros anos da produção da artista, embora discorde pessoalmente dessa visão, tendo-se em vista, sobretudo, que é a primeira mostra de Tarsila no MOMA. O que eu não posso entender é por que o período em que Tarsila e Luís viveram juntos e mantiveram um relacionamento amoroso importante na vida da pintora foi totalmente ignorado.
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Não sei quem prestou consultoria aos curadores, o venezuelano Luis Peres Oramas e a norte-americana Stephanie d’Alessando, nem quem foi o responsável final pela edição do catálogo, mas garanto aos senhores que dados sobre o relacionamento de Tarsila e Luís estão disponíveis, publicados e registrados por diversos estudiosos, entre eles a Professora Aracy Amaral, a quem meu pai forneceu documentos, fotos e informações para os estudos seminais sobre Tarsila.
É verdade que os detalhes da vida conjunta dos dois só vieram a público em 2003, quando meu livro foi publicado. Se os curadores tivessem lido o livro, em vez de simplesmente incluí-lo na lista sem ver o conteúdo, teriam conhecido uma faceta extraordinária da vida da artista.
Reprodução
Tarsila, em retrato de 1925, ao lado de tela de Luis Martins pintado pela artista em 1934
Luís era carioca, 21 anos mais novo que Tarsila, e foi preso pelo governo Vargas por escrever um livro sobre a Lapa, então bairro da prostituição no Rio. Por último, mas não menos importante, como o casal nunca oficializou o relacionamento deles “no papel”, a união era considerada escandalosa e pecaminosa pela família de Tarsila (e minha), muito tradicional e católica. As coisas só pioraram 18 anos depois, quando Luís se apaixonou por uma prima mais jovem de Tarsila, Anna Maria do Amaral Andrada Coelho, que se tornaria minha mãe. A família Amaral ficou enfurecida, apesar de Tarsila defender bravamente o direito de Luís buscar sua felicidade. É mais uma prova da grandeza, abertura e “modernidade” de Tarsila, bem como um retrato da sociedade brasileira à época.
Se os curadores tivessem folheado o livro que incluíram no topo da Bibliografia Selecionada, teriam visto que contém a correspondência trocada pelos três – um total de 30 cartas de Tarsila – além de uma narrativa minha.
Em consequência, os curadores furtaram-se a apresentar devidamente a profundidade e abrangência de pensamento de uma das mais renomadas artistas brasileiras, e privaram os patrocinadores do museu de um fascinante capítulo na história de uma mulher à frente do seu tempo.
Quanto ao livro, terei prazer em enviar-lhes um exemplar. Na verdade, gostaria de enviar exemplares também ao MOMA e ao Art Institute of Chicago, e agradeço se me puder me mandar o nome e endereço das pessoas encarregados.
Enquanto isso, se os curadores tiverem algum interesse na obra, poderão encontrar um exemplar de Aí Vai Meu Coração – as cartas de Tarsila do Amaral e Anna Maria Martins para Luis Martins na Biblioteca Pública de Nova Iorque, que não fica longe do MOMA.
Atenciosamente, Ana Luisa Martins