No meu último texto, eu falei sobre o Bem-Viver e fiz um exercício de pensar na utopia de todos terem comida à vontade, de graça. Também prometi continuar falando sobre isso. Agora, você vai entender como é possível viver a utopia, mesmo com tantos retrocessos
O Bem-Viver é um conceito baseado em civilizações bem diferentes do modo de vida da maioria das pessoas que vivem neste planeta. Foi buscar na filosofia de povos indígenas, africanos e orientais, maneiras de estar presente no mundo sem que seja necessário buscar uma evolução material. Esse conceito que diz que as noções de progresso e de desenvolvimento não precisam ser o nosso norte.
As promessas de desenvolvimento -, que desde a década de 1950, quando o mundo começou a ser efetivamente dividido em países desenvolvidos e subdesenvolvidos, com vários meios-termos -, se tornaram praticamente a razão de viver da maioria.
Em 1949, o ex-presidente dos Estados Unidos Harry Truman institucionalizou a ideia de progresso e desenvolvimento, criando uma espécie de catálogo mundial dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Obviamente, os Estados Unidos estavam na categoria desenvolvidos, e a maior parte dos outros países, entre os subdesenvolvidos.
E para que o mundo aceitasse essa nova divisão, bastou apelar para a velha concepção ocidental de competição, também conhecida como meritocracia: é preciso ralar muito para chegar a ser desenvolvido. Mas desde então, os EUA fazem papel de bom moço e se comprometem a ajudar os países menos desenvolvidos que eles – algo que acontece até hoje, visto que Bolsonaro assinou, na frente de Trump, um termo que rebaixa o Brasil à categoria de subdesenvolvido, eliminando todos os esforços que o país e os seus trabalhadores vêm fazendo para “crescer” na lista dos mais fortes economicamente. Eu não sei em você, mas em mim esse tipo de coisa gera uma sensação de que a economia é uma ilusão, e que essas categorias que definem um país economicamente são mais ilusórias ainda.
O conceito de Bem-Viver trabalha no caminho oposto à busca por lucro ilimitado. Também rechaça fórmulas e manobras criadas com o objetivo de desenvolver a economia e questiona o modo de viver da sociedade ocidental, baseado no consumo.
Isso é grandioso e mexe com todas as estruturas de poder que existem no mundo. Por isso, seria praticamente impossível um país ter um governo que estivesse fundamentado nessas noções e conseguisse viver em paz. A não ser que seja um país economicamente irrelevante, como o Butão.
No Brasil, se já é dificílimo termos um governo de esquerda que seja eficiente e dê poder ao povo, imagine um governo que se inspire nas nossas civilizações indígenas para reger todas as nossas riquezas naturais e impeça a exploração dessas riquezas em prol do lucro, inclusive o lucro dos próprios brasileiros.
Isso não significa que devemos abandonar o conceito de Bem-Viver e parar de pensar em utopia. Ora, é quando a gente altera nossa maneira de pensar que as coisas começam a funcionar do jeito que a gente gostaria.
Eu não acho que seja impossível termos um governo assim. Também não acho que um dia estarei viva para presenciar o povo brasileiro praticando o Bem-Viver em todas as suas esferas sociais.
Mas acho totalmente possível e realizável começarmos a praticar o Bem-Viver agora.
Até porque se, de repente, ocorre uma espécie de revolução e o Brasil ganha de presente um governo baseado nas ideias do Bem-Viver, seria uma estrondosa imposição de pensamento e teríamos muito conflito. Como o que aconteceu em Cuba e como o que vem acontecendo na Venezuela. Definitivamente, os EUA não permitem com que a gente brinque de economia se não for jogando com as regras deles. (Porém a China vem fazendo um trabalho interessante. Prestem atenção na China, queridos leitores!)
Voltando: podemos e devemos começar a praticar o Bem-Viver agora. Como? Criando uma comunidade. Chamando os amigos para mais perto. E aproveitando que temos uma ferramenta maravilhosa – a internet – para mantermos contato com os amigos que estão longe.
Formando uma rede de apoio. Selecionando as pessoas nas quais podemos confiar a nossa própria vida. Criando relações de comunhão, de troca justa e sincera, de parceria, de companheirismo.
Expandindo nossas formas de amar não só entre os familiares, mas também entre todos que cruzam nosso caminho.
Pensar no mundo ideal para você e para todos, para a humanidade inteira, para os bichos, a natureza. E começar a realizar ações que visem esse mundo ideal – que você não vai ver, mas os seus tataranetos verão. Ter fé de que o mundo existe agora (isso é fácil, né?), e esse fato já é suficiente para que você tenha fé na eternidade (isso é mais difícil, mas até mesmo Einsten diz que o tempo é relativo).
Aproveitar de cada característica que nos torna privilegiados neste mundo para expandir esses privilégios entre as pessoas. Doar, dar, distribuir, oferecer, evitando favorecimentos baseados em julgamentos. Compartilhar, nem que seja um link que expõe uma boa ideia. E também não se cobrar se você não realiza trabalhos voluntários, ou não foi àquele protesto importantíssimo contra a reforma da previdência – a gente age de acordo com o que conseguimos fazer no momento. Não se cobrar é evitar o julgamento de si mesmo. É focar no que é mais importante: que coisa mínima você pode fazer pelo mundo e não está fazendo? Às vezes separar o lixo reciclável pode ser muito mais eficaz do que ficar sofrendo ao levar gás lacrimogêneo na avenida Paulista (mas também acho que podemos treinar para não sermos mais bombardeados na Paulista).
Não é preciso viver como um indígena, se você não é um deles. Mas é interessante resgatar principalmente a espiritualidade desses povos. Ou resgatar a espiritualidade ancestral do povo no qual você se identifica mais. Até os católicos e evangélicos brasileiros tem suas espiritualidades (já ouviu falar em Teologia da Libertação? Também posso escrever sobre isso, um dia). Basta entender que existe sim o mistério, que não é necessário compreendê-lo. Basta senti-lo e estar bem com isso. Sem pressa, sem ansiedade.
Agir de acordo com a sua utopia. Eu, por exemplo, imagino um mundo em que todos comam à vontade e de graça. Então estou aprendendo a cozinhar. E também aprecio muito quando alguém cozinha para mim e me convida a comer. Aprecio como o maior presente que alguém pode me dar. Fico realmente grata quando como na casa de alguém. (Sou taurina. E fico muito feliz em ver meus amigos da minha geração aprendendo sobre signos. É uma das maneiras de resgatar essa espiritualidade perdida num mundo materialista.)
Também estou plantando mais. Faço experimentos. Planto com fé de que tudo vai nascer e vai dar frutos. Mesmo que eu nunca coma os frutos da árvore que plantei. Planto imaginando que planta não é minha, ela é dela mesma e é de todo mundo – até mesmo da pessoa que a mata de propósito. Assim como nós somos. Somos donos de nós mesmos, desde sempre. Ninguém é seu dono. E você não é dono de ninguém.
Também gosto de agir de acordo com o pensamento humanista de Sartre, que coloca a responsabilidade do mundo inteiro sobre mim. Sou responsável pela humanidade inteira. E até gosto de ampliar: sou responsável por todos os seres vivos. Pensar assim, no início, pode até enlouquecer a gente. Mas depois de acalmar a mente, descobrimos que a humanidade inteira, o universo inteiro, está dentro de cada um de nós.
Vivamos. E que vivamos bem. Essa é a coisa mais bonita a se fazer, principalmente nessa época de indefinições, de sombras e de medos.
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