Também foi pelas sinuosas ruas de pedra com calçadas estreitas, ladeadas por fachadas de casarões coloniais de portas e janelas de madeira coloridas, pela sensação de estar imersa em um cenário de filme¹; também foi porque as cumulus nimbus, tão típicas do cerrado goiano, estejam sempre no céu azul de uma tonalidade tão profunda que dói no coração, que abre as costelas, que faz a gente querer mergulhar naquele imenso denso. Também foi por causa dos pores-do-sol, porque se a cidade é linda em plena luz do meio-dia, imagine na hora mágica, de misto de alegria e tristeza, que é a do crepúsculo.
Eu quis morar aqui por causa disso tudo que está aí. Mas eu também quis morar aqui porque, desde que voltei para cá, inicialmente apenas como visita, eu passei a receber cumprimentos de todo mundo na rua.
Todo mundo me cumprimentava. A qualquer hora do dia. Era só cruzar com alguém e esse alguém me cumprimentava.
Mas hoje, finalmente, eu entendi a razão de ser cumprimentada por todos. É que me confundem com uma garota, conhecida minha. Vou chamá-la de L. O fato de a letra L ter sido escolhida não tem nada a ver com o meu nome (que também começa com L, se é que você se atentou à isso).
Hoje aconteceu uma cena que se repete diariamente, exaustivamente e aparentemente amorosamente há 9 meses e 11 dias: uma pessoa completamente desconhecida me cumprimentou.
O chef de cozinha tinha me confidenciado ontem que hoje teríamos lasanha de frango, sem presunto, de almoço. É claro que não poderia perder essa. Comi minha lasanha de frango sem presunto acompanhada das coisas que como normalmente. Folhas, vegetais crus, legumes cozidos, um pouco de bife acebolado, mandioca que estava mergulhada na carne de panela, e um tiquinho de arroz e feijão – vocês não tem noção do quão é maravilhosa a combinação de arroz e feijão aqui no fundão do Goiás.
Comi tudo muito calmamente e, quando terminei de comer e de conversar com o moço de passar pano (talvez um dia eu conte a história do moço de passar pano, se essa história render), me levantei para pagar a conta e ir embora, um senhor de meia-idade e certamente usando dentaduras, porém de aparência jovial, bebendo uma cerveja comunista dessas da garrafa verde e com um copo de tulipa², me cumprimentou.
Paguei a conta, e o tempo de passar o cartão no crédito e digitar a senha e não querer minha via e guardar tudo na sacola foi tempo suficiente para ele se dar conta de que não me conhecia. Que havia me confundido com L. Para mim não era nenhuma novidade. Já disse, todo mundo me confunde com L.
Então ele falou comigo. “Você é a filha do J?”
– Não.
– É… L., o seu nome?
– Não!
Neste momento, respondi um monte de coisas sobre as pessoas me confundirem com L., e que eu me considero mesmo parecida com ela, mas não tenho nenhum parentesco com ela. Não que eu saiba da existência de parentesco, mas a conheço e ela é uma amiga, hahaha, coisas bestas que poderiam não ser ditas e nem escritas, porque às vezes as pessoas interpretam errado. O que era para ser um simples relato de eu sendo confundida por L., foi interpretado como se eu tivesse ficado ofendida. Depois de falar, o senhor sentado bebendo uma cerveja me respondeu:
– Ah, me desculpe, é que às vezes eu confundo as coisas.
– De boa!
Sério, tá de boa, mesmo. Eu só quis fazer um relato. Gosto de ser confundida por L. É que L. é uma pessoa maravilhosa. E, se a não conhecesse, suporia de que ela é uma pessoa maravilhosa. Porque todo mundo a cumprimenta na cidade. E gostam tanto dela que até cumprimentam pessoas parecidas com ela, pelo fato de essas pessoas³ simplesmente gerarem a lembrança de L. em suas vidas.
Isso não é maravilhoso? L. é uma pessoa ótima.
Eu conheço L. Quase não a vejo. Mora aqui, eu sei, mas quase não sai de casa. Tem hora que me sinto a “versão rua” de L.
L., se você estiver lendo isso, fique sabendo que faço o possível para cumprimentar as pessoas da forma mais respeitosa possível. Elas, ao que parece, ficam muito felizes em ver você saindo de casa, vendo a rua, passeando pelas ruas de pedra, caminhando por aí.
Na verdade eu não sei se as pessoas pessoas da cidade cumprimentam as outras pessoas. O que faço é sempre cumprimentar antes. Aqui, as pessoas respondem. Quase sempre. Em São Paulo, isso não acontece e você ainda pode ser considerada uma pessoa louca, desequilibrada 4.
Aqui não. Aqui, no interior, é normal as pessoas cumprimentarem de volta. Por isso, cumprimento todo mundo na ida. E receber cumprimentos na volta é muito gostoso.
Bem que eu poderia suspeitar de uma época em que minha avó, que morou a vida inteira aqui, passou a dizer:
“Hoje em dia ninguém cumprimenta mais ninguém nessa cidade. Todo mundo tá ficando muito mal educado!”
Depois de vir morar aqui, sempre me vinha à mente essa afirmação da minha avó e ficava sem entender como é que ela poderia reclamar disso, sendo que mais de uma década se passou desde a época em que ela reclamava disso e a minha vinda para cá, e as pessoas, que deveriam estar cumprimentando ainda menos (essa é a tendência – não vê São Paulo?) estão cumprimentando pra caralho?
Aí me veio o insight. É a L. Na verdade, eles gostam da L. E me confundem com a L!
Ultimamente, ando percebendo que me cumprimentam menos. Não me olham como olhavam: com uma cara curiosa, de novidade. Não sou mais novidade. Não precisam mais me cumprimentar. Já me viram. E eu nem sou a L.! Não há razão para me dar bom dia. Às vezes, há razões ainda maiores para não me dar bom dia, nas quais desconheço. Vai saber o que as pessoas andam falando sobre mim! Eu bem que gostaria, adoro as histórias. Não falo de maneira egocêntrica. Numa cidade do interior, vai ter sempre alguém falando sobre você. Seja agora, seja ontem, seja no futuro. Você será comentado em um local em que você não estará presente e nem poderá “se defender” do que te julgam (se é que estão julgando). Aprender a lidar com isso é a grande sacada que enxergo nos olhos do povo mais velho que habita essa cidade. Seria ótimo se entendêssemos como eles levam as coisas: na base do “eu estou super de boa e te cumprimento porque carinho é bom e eu gosto”. Esse tipo de gente está ficando raro. Gente que curte carinho.
Enfim. Ainda assim, as pessoas me cumprimentam mais do que em São Paulo. Menos do que antes, obviamente.
L., apesar de eu te amar (você é realmente maravilhosa), e gostar muito de ser confundida com você, preciso dizer: a graça acabou. Ando com muita preguiça de validação social. E minha curiosidade é maior do que essa preguiça. Ou seja, me interessa mais algo além do cumprimento, uma parada para conversar, qualquer coisa, do que a falta do cumprimento por eu não atender às suas expectativas. Portanto, não vejo muita graça em quem só é curioso para observar os espelhos d’água. O medo de mergulhar no profundo nos torna rasos, medrosos e covardes. A vida passa e a gente nem vê.
Bom mesmo é criar vínculos. A gente se torna companheiros de vida depois de um bom dia desses abertos.
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Notas
¹ Ou o cenário de um cartão de propaganda turística, desses bem bregas, de letras douradas e logos horríveis, financiados órgãos de turismo dos governos, que você nem entende para que servem, talvez para dar emprego para jornalista e estagiário e outras pessoas acostumadas a viver num mundo não-criativo. Você decide a função do cenário.
² Vejam que disparate! Fazer isso numa cidade do interior. Ou ele é muito bem respeitado na cidade, ou ele é bêbado. Mas cara de bêbado, ele não tem. Duvido que eu, mulher, estaria me sentindo tão à vontade bebendo uma cerveja, sozinha, durante a hora do almoço, por aqui. Será que estaria? Já fiz isso, na real. Só não foi em um dia de semana. A diferença entre os dias de semana e os fins de semana e a sua imagem de estar bebendo cerveja em locais públicos em plena luz do dia, sendo homem ou mulher, é enorme.
³ No caso, só eu, até agora, mas pode ser que tenham mais. Se você tiver alguma semelhança física com L. e estiver passando pela mesma situação que eu, por favor, me mande uma mensagem de zap, aqui nessa cidade eu estou em todos os grupos de zap, menos o das mães, obviamente, pelo fato de eu não ser mãe. Sinto-me excluída do círculo das mães, até porque a maioria das mulheres que moram na cidade e são da minha idade são mães. Mas não é algo para se chatear tanto, por isso transformei essa parte do texto em uma nota de rodapé. Um dia também posso escrever sobre isso, se vier a calhar: as mulheres que não são mães e convivem com mulheres cuja maioria é mãe, e a sensação das não-mães de não poder falar sobre determinados assuntos (inclusive de amor!) pelo fato de – ainda – não terem sido mães. (Mães, vou jogar a real aqui, esse tipo de exclusão não me motiva a me tornar mãe para ser melhor aceita e minhas opiniões, respeitadas. Então melhor pararem com essa propaganda, que está virando uma anti-propaganda. Eu me recuso a acreditar na loucura que vocês inventaram de que só vou encontrar o amor depois de parir. Isso é ridículo e para mim é a maior demonstração de que vocês estão fodidas e desesperadas e precisam de mais pessoas no barco de vocês, fodidas e desesperadas, para validar qualquer sentimento ambíguo que vocês tenham e que vocês chamam de amor. Sinto muito se pareço escrota, mas vocês não me enganam com esse discurso vazio e preconceituoso). Pode ser que venham a me chamar de racista reversa do mundo das mães. Ainda assim, não seria justo. Sugiro a criação de um termo para definir mulheres que se sentem excluídas de círculos sociais por não serem mães, e talvez possa ser algo como mãemimi. Aliás, mãemimi poderia ser um termo com definições até mais amplas do que isso. Certo. Acho que já escrevi tudo que tinha para escrever sobre esse assunto.
4 Até porque imagine o quanto insano seria cumprimentar todas as pessoas pelas quais você cruza no metrô. Se você frequenta estações como República ou Paulista, por favor, não tente cumprimentar todo mundo, em nenhuma hora do dia (à noite, então, nem pensar!), você vai mesmo parecer louco. Mas a experiência de cumprimentar alguns pode render algo. Vou tentar na próxima, talvez.
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